Título: Tentativa para fugir à obrigação
Autor: Antônio Carlos Amorim
Fonte: Gazeta Mercantil, 03/09/2004, Opinião, p. A-3

Revisão de lei não desobriga o Estado de investir em penitenciárias. No Brasil, tornou-se comum lançar mão de bons argumentos em defesa de falsos objetivos, confundindo a sociedade e levando-a a defender causas sem identificar as verdadeiras motivações. Que a Lei de Crimes Hediondos precisa ser revista, como propôs recentemente o governo, não resta a menor dúvida. Contudo, a razão apresentada para fazê-lo - de que as prisões estão superlotadas - soa como tentativa disfarçada de se eximir de uma obrigação: a de investir em penitenciárias mais modernas e seguras, nas quais o preso possa ter alguma chance de ressocialização e recuperação. Mesmo reconhecendo-se que a falência não é apenas do sistema penitenciário, mas da própria sociedade com seus altos índices de violência, é inadmissível qualquer renúncia a esse dever de Estado. Sobretudo considerando-se o déficit de 100 mil vagas em nossas penitenciárias e o fato de que, a cada mês, ingressam 3,5 mil presos no sistema. A população carcerária brasileira é de 310 mil indivíduos. Sobrevivem amontoados em condições desumanas - risco à própria sociedade que lhes negou melhor oportunidade de vida. Então, a título de esclarecimento, por que a Lei de Crimes Hediondos deve ser revista? Primeiro, porque sua constitucionalidade é questionável em face do princípio da individualização da pena, previsto em nossa Carta, pelo qual o juiz, ao proferir uma sentença, deve considerar as características do agente, bem como as circunstâncias atenuantes e agravantes em que o crime foi cometido. Em segundo lugar, por uma questão de cunho científico com implicações diretas para a aplicação da Justiça. O que deve tornar crime mais grave não é necessariamente sua classificação formal, mas a maneira como foi cometido - entendimento que certamente respaldou o constituinte ao contemplar referido princípio na Constituição de 1988 (artigo 5 , inciso XLVI). Por fim, por uma questão prática: a experiência no Brasil e no mundo tem demonstrado que penas mais pesadas não são garantia de redução dos índices de violência. Tomemos como exemplo a própria lei em questão. Embora esteja em vigor desde 1990, não se tem notícia de que foi capaz de diminuir o número de estupros, seqüestros, latrocínios, crimes relacionados ao tráfico de drogas, etc. O que reduz a criminalidade é a certeza de punição, não o peso da sentença. Portanto, se o governo pretende propor a revisão da Lei de Crimes Hediondos, ótimo: as reais motivações estão todas aí. Mas que isso não sirva de desculpa para deixar de investir no aumento do número de presídios, bem como na reforma dos já existentes. A recuperação da sociedade falida que gerou o ambiente de violência em que vivemos hoje - o que significaria o antídoto às altas taxas de criminalidade e, por extensão, aos presídios superlotados - é meta de longo prazo a que todos nós, brasileiros, devemos nos dedicar, independentemente de partido ou ideologia. Porém, não podemos ignorar as obrigações mais urgentes e irrenunciáveis do poder público, como tornar o aparelho policial mais eficiente, agilizar a Justiça e, evidentemente, restaurar o sistema penitenciário. kicker: A maneira como a população carcerária sobrevive é um risco para a sociedade