Título: Recursos oficiais para o capital de giro
Autor:
Fonte: Gazeta Mercantil, 06/09/2004, Opinião, p. A-3

Na quinta-feira, ao cobrar dos bancos oficiais que utilizem seu poder de fogo para garantir os recursos necessários ao financiamento da produção, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ecoava uma preocupação que é de toda a equipe econômica do governo e também do mercado: é grande o descompasso entre a célere retomada do crescimento econômico e a lentidão do retorno do investimento e da expansão do crédito bancário à disposição das empresas. Se para fazer frente ao desafio o presidente apela para os bancos oficiais, é porque o sistema bancário privado não tem sabido ou podido acudir em tempo oferecendo recursos a custos suportáveis.

A apreensão tem a sua razão de ser, pois sem financiamento em tempo oportuno não é possível assegurar um novo ciclo de inversão produtiva sem risco de inflação. A evidência empírica, colhida da experiência de muitos países, mostra que o crescimento econômico elevado está associado ao nível de financiamento disponível. Vejam-se na atualidade os casos da China e da Índia, países cujo crescimento a taxas elevadas é sustentado pela fartura de crédito barato.

Diferentemente do que ocorreu no passado, desta vez os recursos não poderão vir majoritariamente de fora, mediante empréstimos externos, em razão do constrangimento na relação dívida externa/PIB; nem do endividamento público interno, já que a capacidade do Tesouro de contrair dívida pública sem perturbar o ambiente econômico parece ter chegado ao limite. A opção que resta seria recorrer ao mercado interno - crédito bancário de base doméstica e mercado de capitais, sem desconsiderar obviamente o investimento direto estrangeiro em caráter suplementar. Mas aqui surge o problema.

O sistema bancário no Brasil revela-se incapaz de fornecer empréstimos de longo prazo para investimentos, com exceção dos bancos estatais. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social é responsável pela quase totalidade dos financiamentos de longo prazo colocados à disposição das empresas.

No financiamento do capital de giro, que representa em média 30% a 40% dos ativos de uma empresa, a participação da instituição pública é também elevada. Assim, por exemplo, o Banco do Brasil responde por um terço dos empréstimos destinados ao financiamento do comércio exterior.

Como é sabido, o volume de empréstimos como proporção do PIB é muito baixo no Brasil e decrescente. Segundo números divulgados pelo Banco Central, em julho atingia a 26,1%, contra 120% nos países desenvolvidos e superior a 100% na Coréia do Sul e Malásia. Em 1994, logo após o início do Plano Real, os empréstimos ao setor privado correspondiam a 35% do PIB. A forte redução do crédito às empresas é um dos fatores que explicam o fraco desempenho da economia brasileira nas últimas décadas.

São várias as causas, atuais e históricas, além da elevada aversão ao risco, que explicam as disfunções do crédito no Brasil e a preferência das instituições financeiras por aplicações de tesouraria. O País mal acaba de sair de um longo período de instabilidade, durante o qual o setor público, para amparar o ajuste interno e externo, acabou por gerar uma crise fiscal e assumir crescentes dívidas em moeda nacional e em divisas. Data desse período a alteração do comportamento bancário, que passou a financiar o endividamento público em detrimento da concessão de crédito às empresas. Agravando ainda mais esse quadro de escassez de recursos à disposição dos setores produtivos, o Banco Central, para facilitar a rolagem da dívida pública, mantém depósitos compulsórios em níveis muito elevados. Além disso, no afã de captar recursos, o governo viciou os investidores em ativos de renda fixa, juros altos, liquidez e segurança, criando para si mesmo dificuldade de captar poupança de longo prazo.

Uma tal situação contribui para explicar por que é aos bancos oficiais que o presidente Lula apela no esforço de reunir condições para assegurar a continuidade do crescimento. A segurança e a confiança do sistema bancário no financiamento às atividades produtivas não retornarão de uma hora para outra - e o seu restabelecimento é dependente de mudanças ainda por ocorrer, como as associadas à eliminação da cultura inflacionária dos investidores e ao estímulo ao alongamento da dívida pública, entre outras.

Enquanto as mudanças não vierem, as instituições oficiais de crédito continuarão a financiar as atividades produtivas. A novidade no governo Lula é que pela primeira vez em sua história o BNDES assume também o financiamento ao capital de giro, por aparente inapetência do sistema bancário privado. kicker: Por inapetência do setor bancário privado, o BNDES abre linha de crédito para capital de giro, sob a justificativa de "emergência"