Título: Diplomacia comercial e política
Autor: Humberto Barbato
Fonte: Gazeta Mercantil, 13/09/2004, Opinião / Editorial, p. A-3

Na reunião realizada em Puerto Iguazú, Argentina, no início de julho passado, o presidente argentino Néstor Kirchner determinou que suas fotos ao lado do presidente Lula não fossem divulgadas em seu país. Paralelamente o Brasil assumia a presidência pró-tempore do Mercosul. Percebemos que a solenidade, mesmo contando com a presença de presidentes de outras nações, interessadas na associação ao Mercosul, estava manchada por resistentes divergências entre sócios, mais particularmente entre o Brasil e a Argentina. Sob a presidência brasileira, poderão ser celebrados importantes acordos comerciais em gestação há muitos anos, o principal deles o acordo Mercosul-União Européia. Considerando-se que na segunda quinzena de julho ocorreu a paralisação das negociações em Bruxelas e que posteriormente o mesmo ocorreu em Brasília na primeira quinzena de agosto, dificilmente se concretizará o plano de firmar tal acordo em outubro, antes da posse da nova Comissão Européia. Infelizmente deveremos no máximo nos contentar com um acordo arrancado a fórceps dos países andinos. Para a indústria brasileira a paralisação das negociações com a UE é algo a ser analisado setor a setor, pois quase nada irá alterar quanto ao nosso acesso ao mercado europeu de bens manufaturados, em face de as tarifas praticadas pela UE já serem baixas, além da existência do SGP (Sistema Geral de Preferências). Por outro lado, a entrada dos dez novos membros na Comunidade Européia poderá significar muitas dores de cabeça ao Brasil, frente à concorrência de sua produção com a nossa. As negociações frustraram o agronegócio, que tinha a expectativa de aumentar significativamente sua presença no mercado europeu, crivado de quotas, subsídios, enfim, todo o arsenal protecionista largamente utilizado pelos países ricos. Também o setor de serviços aparentemente ficará na saudade, com a agravante de estarmos discutindo as Parcerias Público-Privadas (PPPs), e, portanto, a abertura do mercado em áreas que não contrariassem interesses nacionais seria um avanço importante. Assistimos ainda em julho, em Genebra, a um fortalecimento da Organização Mundial do Comércio (OMC), devido à atuação do Itamaraty, que conseguiu, com a criação do G-20 para Cancún, a continuidade das negociações em torno da ambiciosa agenda de Doha. A atuação do Itamaraty no avanço das negociações na OMC, que pragmaticamente deu continuidade ao trabalho que há anos vem sendo construído, é considerada eficiente e eficaz, diferente de quando se trata de negociar e realizar acordos com países vizinhos, particularmente com a Argentina. Considerando-se que tanto a indústria brasileira quanto a depauperada indústria argentina são constituídas por cerca de 70% de pequenas e médias empresas, muitas delas familiares, falar-se de ordenar a cadeia produtiva, de complementaridade, é algo demasiadamente romântico. Se estou equivocado, façamos uma pesquisa junto a empresários brasileiros e também argentinos, e vamos verificar quantos estarão dispostos a associar-se e em que termos. Arranjos produtivos, complementaridades, são facilmente alcançados por grandes companhias transnacionais. Estas, para garantir sua presença em diferentes regiões do mundo, utilizam os acordos comerciais, as vantagens fiscais comparativas e outros instrumentos para viabilizar a montagem de produtos em um país, com partes e peças fabricadas em outra unidade do mesmo grupo, localizada em um país vizinho ou distante. A busca de complementaridade com a Argentina tem sido estimulada entre nós, e parece-nos que se baseia na necessidade de manter em pé esse cadáver insepulto denominado Mercosul - uma pseudounião aduaneira que não chega a ser uma zona de livre comércio -, a título de preservar-se uma estratégia brasileira de liderança política na América do Sul, a qual infelizmente tem tido resultados pouco eloqüentes. Seria mais útil aos interesses brasileiros que o pragmatismo do Itamaraty fosse também utilizado com eficiência em negociações com o Mercosul, bem como com os demais países latino-americanos, pois não faz sentido sermos duros nas negociações com os países ricos e extremamente generosos com outros países, especialmente os que nos impõem derrotas, como a ocorrida há poucos dias por ocasião da proposta brasileira de criação do Grupo dos Amigos de Cuba. Creio que a diplomacia comercial não deve seguir a mesma lógica da diplomacia política, que pode ter matizes ideológicas. A diplomacia comercial deve ter lógica própria e seguir as tradições, por vezes seculares, de ganho e preservação de mercados que bem caracterizam e da qual se orgulham o Brasil e seu corpo diplomático.

kicker: Deveremos nos contentar com um acordo arrancado a fórceps dos países andinos