Título: Mobilidade envolve ação simples, diz Lerner
Autor: Staviski, Norberto
Fonte: Gazeta Mercantil, 27/03/2008, Transportes, p. C5

Curitiba, 27 de Março de 2008 - O arquiteto e urbanista curitibano Jaime Lerner, 70 anos completados em dezembro, voltou a suas origens. Depois de ser prefeito da capital paranaense por três vezes e de deixar suas marcas e inovações na cidade ao ponto dela parecer que nunca teve outro alcaide, e ainda por duas vezes ser eleito governador do Paraná, ele confessa que ficou tão desiludido com a política que transferiu seu título eleitoral para o Rio de Janeiro para que "nunca mais o convidassem para ser candidato a coisa alguma". No escritório do Instituto Jaime Lerner, em Curitiba, em meio às obras de uma ampliação do que será uma futura biblioteca, se o político já não existe ou está em recesso, o arquiteto continua bastante lembrado. Em meio ao burburinho de telefonemas, as conversas são mais em inglês e espanhol do que em português. Explica-se: o curitibano é muito requisitado no exterior, onde é mais conhecido como urbanista, do que no Brasil. Na última segunda-feira, por exemplo, ele preparava um périplo que o levaria no final de março para uma palestra em Boston, no Massachussets Institute of Technology - MIT, a uma reunião em Londres, um retorno a Oklahoma, nos EUA, enquanto procurava uma data vaga para ir a Porto Rico. O fato é que Jaime Lerner continua a ser uma autoridade mundial nas questões que envolvem cidades pelo que fez em Curitiba e em pelo menos outras 83 cidades do mundo onde suas idéias deram origens a projetos que melhoraram a qualidade de vida dos cidadãos e, principalmente, melhoraram o transporte público de superfície. A mobilidade urbana é uma de suas paixões e uma das áreas das quais ele mais gosta de conversar: "Hoje faço apenas acupuntura urbana", afirma com modéstia. "Minhas idéias são basicamente projetos de muita simplicidade e, por não envolvem grandes obras e grandes volumes de recursos, isso talvez não agrade os políticos brasileiros em geral." No exterior, no entanto, elas continuam muito bem aceitas a julgar pelo ritmo de trabalho do instituto onde uma equipe de 12 urbanistas assessora o ex-governador paranaense no trabalho de modificar a maneira de pensar os aglomerados urbanos. Nesta entrevista exclusiva, Jaime Lerner critica quem vê os problemas de congestionamentos como simples problemas de trânsito: "O problema está na concepção das cidades", defende ele. "Mas o segredo da mobilidade está no seguinte: cada sistema de transporte, seja pelo metrô, de superfície, carro ou bicicleta jamais deve disputar o mesmo espaço", acrescenta. Gazeta Mercantil - A indústria automobilística está batendo recordes de produção e os automóveis estão invadindo as ruas das cidades de uma maneira nunca vista no País. Mesmo cidades de escalas tão diferentes como Curitiba e São Paulo enfrentam congestionamentos e desperdício de tempo e energia pela falta de mobilidade. Há remédio para isso? Enquanto não existir uma pílula anticoncepcional para o automóvel nós temos de pensar o problema da mobilidade procurando resolver todas as alternativas de mobilidade. Durante muito tempo se pensou no carro como única alternativa de mobili-dade e as cidades de todo o mundo incorreram em vários erros. O erro mais grave, além da dependência exagerada do automóvel, é o erro de concepção. Costumo dar como exemplo de qualidade de vida a tartaruga. Exemplo de vida, trabalho e circulação juntos. O próprio casco da tartaruga tem o desenho de uma tecitura urbana. Você poderia imaginar o quão triste ficaria a tartaruga se nós cortássemos o seu casco, e fizéssemos o lar ser aqui, o trabalhar ali e o lazer acolá. É isso o que estamos fazendo com as nossas cidades. Separando as funções. E pior ainda. Há muita gente que quer trabalhar numa cidade residindo fora dela. Então tudo isso gera um trânsito desnecessário e um gasto maluco de energia e da nossa própria energia. Quando a gente começa a analisar o problema da sustentabilidade, do câmbio climático, não é só um problema de congestionamentos. Há coisas maiores por detrás disso. Quando você começa a ver que 75% dos problemas de emissão de carbono estão nas cidades, fica inegável que é aí que você tem de agir. Claro que muitas coisas pensadas são boas e houve o grande trabalho do Al Gore de trazer essa preocupação. Mas a verdade é que as pessoas não sabem o que fazer. Gazeta Mercantil - Hoje já se fala em restringir até mesmo a entrada de automóveis nas cidades. Criar barreiras e o pedágio urbano resolve? O problema não é só isso. Vejo assim: muita gente pensa que sustentabilidade envolve novos materiais. Bom, mas não é só isso. Outros pensam em sustentabilidade com prédio verdes. Bom, mas não se pode imaginar que de uma hora para outra o mundo inteiro construa assim. Também pensam em novas formas de energia. Isso é bom, mas não é suficiente. Assim como reciclar, reutilizar. Agora, quando você vê que 75% dos problemas estão nas cidades é na concepção que você tem de trabalhar. É ali que você vai ter um resultado mais forte, mais efetivo. Gazeta Mercantil - E o que então pode resolver, o que pode ser feito? São coisas que estão muito claras. Primeiro eu diria que alguns mandamentos são essenciais. Em primeiro lugar no uso do automóvel. Não é preciso deixar de usar o automóvel. A solução é usar menos. É usar bem. O transporte de rotina pode ser público e o automóvel para lazer. São essas coisas que vão ter de acontecer nas cidades. Para isso elas vão ser instadas a melhorar o transporte público. No prazo de cinco a dez anos, quem não fizer progressos efetivos no transporte público não terá mais dinheiro. Os recursos vão começar a ser controlados. E as cidades que não estão colaborando para resolver um problema que é essencial ao mundo não terão mais verbas. Um segundo mandamento é a necessidade de morar mais perto do trabalho ou trazer o trabalho mais próximo de casa. Felizmente, os grandes geradores de empregos estão mais decompostos na malha urbana. A indústria do vestuário, da alimentação, do mobiliário, não precisa ser afastada das cidades, sem falar nos serviços. Isso vai ser fundamental e haverá leis e incentivos que vão premiar essas possibilidades. Um terceiro ponto é separar o lixo porque isso vai economizar muita energia. Mas separar mesmo como foi feito em Curitiba. O quarto ponto é o múltiplo uso. Você não pode mais imaginar trechos de cidades que ficam vazias depois de certa hora. Usar mais a cidade durante 24 horas é muito importante. O grande erro é pensar que as soluções de coisas permanentes que nós temos estão no trânsito, quando elas estão na concepção das cidades. As soluções estão no bom transporte público, na não dependência do automóvel e na visão de que moradia e trabalho devem ser cada vez mais próximos. Gazeta Mercantil - Como o senhor vê a utilização destas idéias no Brasil. Há problemas para sua aplicação? Sempre tive dificuldades de aplicar estes conceitos no País, mas a necessidade está mostrando que este é o caminho. Se Curitiba enxergou antes, melhor foi para ela. E temos hoje 83 cidades no mundo implantando sistemas semelhantes aos que foram aplicados na capital paranaense. Estou trabalhando mais fora do que no Brasil e temos exemplos de trabalhos magníficos que seguiram o modelo da capital paranaense como em Bogotá. Gazeta Mercantil - Mas por que isso não acontece por aqui? Primeiro é porque é muito simples e é muito difícil enxergar as soluções mais simples. Segundo, porque não tem muita obra. Terceiro, é porque falta a coragem necessária para em determinados momentos adotar as soluções simples. Cidades muito maiores que São Paulo , Seul, por exemplo, teve essa coragem. Uma cidade como Los Angeles, que é toda voltada para o automóvel, já implantou uma linha de superfície que é um sucesso. E eles vieram conhecer Curitiba. Gazeta Mercantil - O sistema de superfície testado na capital paranaense ainda é o mais eficiente em termos de custo/benefício? Sempre procuro evitar uma discussão sobre qual é o sistema melhor. Acho ótimo que uma cidade tenha duas ou três linhas de metrô. São Paulo tem quatro linhas, mas 84% dos deslocamentos ainda se fazem na superfície. Então é preciso operar bem o sistema de superfície. Temos que `metronizar¿ o transporte de superfície que é bem o conceito da capital paranaense. Isso não quer dizer copiar Curitiba já que cada cidade tem suas características, mas a operação tem de ser muito bem feita. Hoje eu diria que tem metrô usa metrô, quem tem superfície usa isso bem. Quem tem carro usa bem o carro. Quem tem bicicleta usa bem a bicicleta. O segredo da mobilidade está no seguinte: cada sistema jamais deve disputar o mesmo espaço. Aí você pode ter uma solução boa para qualquer cidade. Gazeta Mercantil - E o que é necessário? Agora, para isso é necessária a vontade política, a estratégia e a montagem de equação de co-responsabilidade. Não é preciso esperar, mas muitos fogem da solução dizendo que não têm recursos, outros dizendo que a cidade é muito grande. Não é problema de escala e de recursos e sim da montagem de uma boa equação como fizemos em Curitiba. Fizemos um projeto e propusemos ao setor privado: nós vamos investir no itinerário e o setor privado vai investir em frota e nós pagamos por quilômetros rodado. Gazeta Mercantil - Como o senhor está vendo essa política de cada vez se restringir mais o uso do automóvel nas regiões centrais das cidades? O pedágio é eficaz? Acho que tudo vale e Londres abriu um caminho ao fazer uma restrição. Paris abriu outro caminho que é o da bicicleta, de transformar a bicicleta num transporte público. Você usa e devolve. Cada cidade vai encontrando seu jeito e não descarto nenhuma possibilidade ou a associação de todas. Mas o segredo continua sendo jamais competir no mesmo espaço. Agora isso precisa ser feito já. A cidade de Nova York levou 50 anos para discutir o metrô da Second Avenue Line. Estão começando agora. São cinqüenta anos discutindo e mais vinte anos para fazer uma linha que irá custar US$ 4 bilhões e não vai transportar mais passageiros que a linha Norte-Sul de Curitiba com seu biarticulado que passa em frente ao meu escritório. Então a gente não pode ser preconceituoso em relação a nenhum sistema. Tem de ver qual é mais efetivo para aquela cidade, para aquela circunstância. E principalmente o que é de mais rápida implantação, porque temos de dar uma resposta rápida e de qualidade para que esta resposta seja uma alternativa melhor que a do uso do carro. O transporte público tem de ser uma boa alternativa. Não pode ser qualquer alternativa. Em Curitiba 25% das pessoas que têm carro usam o transporte público porque é uma boa alternativa. Gazeta Mercantil - E como dar essa resposta rápida? Qualquer sistema de transporte sempre pode ser aperfeiçoado. Cidades que têm metrô estão pensando em superfície. Estou indo agora para Londres para discutir isso. Eu sempre digo que nós temos de ter cada vez mais smart metrô, smart bus. Isso quer dizer que daqui a pouco os metrôs convencionais vão ter de parar menos e usar as linhas de superfície como linhas auxiliares. Este é o caminho. Por isso não se pode dizer qual é o melhor sistema. Nós temos de usar tudo, bicicleta, carro, ônibus, táxi, metrô, o que for. Gazeta Mercantil - E hoje o senhor está longe da política? Isso é definitivo? Estou longe, mas sempre procurando ajudar fazendo que sempre fiz. Estou trabalhando no Brasil, em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro com assessoria. Mas estamos no México, Loanda e cada vez as cidades mais nos requisitam. A proposta é ajudar as equipes locais a encontrar uma boa solução. Não quero ficar amarrado a uma cidade e sim dar as condições, mostrar que é possível. Se me perguntam o que faço respondo que faço acupuntura urbana. Sempre é possível numa cidade mesmo que planejamento tome tempo, fazer algumas ações locais rápidas que possam criar uma nova energia no processo de planejamento. Não é no lugar do planejamento. É para ajudar. É isso que chamo acupuntura urbana. E isso não demora. São uma, duas ou três idéias que criam uma energia que pode melhorar bastante. São ações ligadas a sustentabilidade, mobilidade, sociodiversidade. Às vezes é um projeto de arquitetura, ou destinado à criança. (Gazeta Mercantil/Caderno C - Pág. 5)()