Título: A ascensão econômica dos pardos, pretos e pobres
Autor: Piva, Luiz Guilherme
Fonte: Gazeta Mercantil, 08/04/2008, Opiniao, p. A3

O Brasil já foi oficialmente racista. E mesmo depois da Abolição muitas teses pseudocientíficas quiseram sustentar a superioridade dos brancos. Duraram, em circuito comercial, até os anos 30. Tinham por base literatura social e idéias políticas européias. Com a derrota do nazi-fascismo, contudo, tiveram que circular só à boca pequena. Na América do Sul, esse tema é importante no Brasil e na Argentina, nos quais o afluxo de europeus no final do século XIX foi intenso. A própria questão da modernização teve componentes raciais. Na Argentina defendia-se o branqueamento pela imposição do europeu sobre os mestiços nativos - e isso coincidia com o poder central de Buenos Aires contra os caudilhos dos pampas. Raça, idéias, institucionalização, riqueza: o alinhamento era explicitamente defendido pelos principais intelectuais. No Brasil a tese do branqueamento modernizador teve menos defensores - e com peso intelectual menor. Mas eles não o fizeram menos explicitamente; e tiveram influência tanto em governos quanto em partidos e movimentos. Tais formulações abrigavam outro preconceito: contra os pobres. Você está horrorizado de imaginar que isso existisse no Brasil. Você não vê diferença entre raças e classes sociais. Nem seus amigos. Ninguém que você conheça. Mas é verdade. Falava-se cruamente contra pardos, pretos e pobres. À aversão à pele esteve ligada a aversão à renda, aos modos, às roupas, ao aspecto físico. Regras sociais separavam os ambientes. Preços, etiquetas e arquiteturas isolavam as classes. Brancos e ricos com seus espelhos reluzentes. Pobres, pretos e pardos com seus antolhos opacos. A exploração econômica, a dominação social e o poder político têm tudo a ver com isso, conforme se lia nos bê-á-bás considerados subversivos de então. Não se espante. Também houve subversão no Brasil. Gente que quis mudar nosso belo quadro social. Que por isso foi parar na Central, no hospital ou no xadrez e nunca mais foi encontrada. Mas Inês é morta. Você acha que não vale a pena revirar o passado. Você fala sobre a miscigenação brasileira, sobre a convivência entre ricos e pobres e até sobre o fato de que nem há tantos pobres assim. Enxugando os lábios com as costas da mão, chega perto e sussurra: tem muito é vagabundo! Mas que ninguém o ouça, não é mesmo? Como eu dizia, já fomos abertamente racistas e preconceituosos. Houve miscigenação, ascensão social, certa mistura de modos e padrões - mas só até o ponto em que a dominação, a exploração e o poder não fossem incomodados Muitos brancos e ricos defendiam isso em voz alta. Hoje, quando, felizmente, aquelas são posturas proibidas e execradas, quando as classes baixas vêem sua parca renda crescer um pouco e freqüentam shoppings, restaurantes e shows sem muitos constrangimentos, quando muitos deles podem cursar faculdades duvidosas (como os produtos dos shoppings, restaurantes e shows), quando vemos os pretos, pobres e pardos nas ruas, com suas roupas, seus modos, sua aparência, seus carros baratos, sua sem-cerimônia - pois bem, hoje, os brancos e ricos ficam intimidados, se olham em frente às lojas procurando sua auto-imagem reluzente, sussurram que o ambiente decaiu, abanam se ninguém estiver olhando - a mão na frente do nariz, e defendem, à boca pequena, maior separação, maior demarcação. Econômica e politicamente, a ascensão dos pretos, pardos e pobres tem relação com a reeleição e a popularidade crescente de Lula. Os brancos e ricos que não aceitam isso, que não vêem em Lula a sua imagem refletida, que não suportam sua aparência, sua história, sua fala, que não concordam com essa invasão de ambientes e arquiteturas sem respeito aos preços e às etiquetas, procuram meios de criar maior demarcação. Vão para outros bairros, vão para o exterior, escrevem revistas e blogs como que abanando o nariz e sussurrando contra a vagabundagem do Bolsa-Família e o acinte dos aumentos salariais. Alguns até relêem os abecedários que consideram subversivos para lembrar como é que era essa história de ameaçar o poder, a dominação e a exploração. Você não. Você sempre foi a favor dos pardos, pobres e pretos. Tem até amigos pobres, pardos e pretos. Você não. kicker: O crescimento da renda de classes mais baixas incomoda muita gente (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 3) * - Diretor-técnico da LCA Consultores. Próximo artigo do autor em 29 de abril)