Título: Demagogia e subsídios contra os biocombustíveis
Autor:
Fonte: Gazeta Mercantil, 16/04/2008, Editoriais, p. A2

16 de Abril de 2008 - Maior oferta de biocombustíveis e preços dos alimentos são uma dessas relações que prosperam automaticamente até que algum elementar bom senso tome conta do assunto. Nesse quadro, é até compreensível que políticos ameaçados por perda de popularidade, em qualquer canto do mundo, enveredem por caminhos e discursos bem simplistas e batam seguidamente na tecla dos vínculos entre etanol e fome. Mais preocupante, no entanto, é a situação criada pelo relator da ONU para o direito à alimentação, Jean Ziegler, que classificou os biocombustíveis como "um crime contra a humanidade", garantindo que o mundo teria milhões e milhões de novos famintos pela escalada nos preços dos alimentos que seriam usados para fazer funcionar os motores dos automóveis do mundo rico. Ainda pior é a repetição desse sofisma em ambientes como o da Conferência Regional da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) para América Latina e Caribe, realizada no Itamaraty, em Brasília. A diplomacia brasileira reagiu com firmeza, apresentando números da redução do impacto ambiental e da produtividade da agricultura nacional em áreas não destinadas à cana-de-açúcar. É uma argumentação difícil porque os interlocutores parecem já ter notado o lucro de cultivar os mitos nesse tema. Por exemplo, no caso do relator da ONU, quem já o alertou para não misturar o joio entre produção de biocombustível e proteção de subsídios agrícolas foi a voz autorizada do presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, em Genebra, há alguns meses, destacando a diferença no cultivo de cana do Brasil e a de milho nos Estados Unidos ou de outras culturas na Europa. Ziegler fez ouvidos de mercador e continuou a repetir seu sofisma. A falsa relação entre biocombustíveis e alta de alimentos começou com forte e constante subida do preço do milho nos Estados Unidos, com significativas repercussões até no consolidado hábito dos mexicanos de comer tortillas. Há cinco anos os norte-americanos destinam parcelas crescentes da produção de milho para fazer etanol, até atingir 30,7% da produção para esse fim em 2007. O motivo dessa decisão está nos altíssimos subsídios que esses agricultores recebem, o que cria uma óbvia distorção de mercado, especialmente se o comprador final é o próprio governo. Essa ditorção não foi, isoladamente, a maior responsável pelo disparar de preços do milho, e sim a percepção dos especuladores que lidaram bem, nos dois últimos anos, com a expectativa de falta do produto, manipulando estoques. O que ocorria com o milho foi só um sinal para despertar as atenções do mercado para o preço das outras commodities agrícolas. A insegurança do último ano no mercado de ações, com o estouro da bolha imobiliária nos EUA, fez com que muitas empresas e investidores internacionais migrassem suas apostas para essas commodities. O resultado só poderia ser a alta do preço final dos alimentos. Vale lembrar também que o preço do petróleo triplicou nos últimos três anos e empurrou para cima o custo dos fertilizantes: 140% no preço internacional desse insumo só nos últimos 12 meses. Preços agrícolas sempre dependeram de fatores climáticos, e nos últimos três anos as intempéries derrubaram muito o volume produzido. A seca violenta da Austrália e da Ucrânia atingiu em cheio a produção mundial. Fatores climáticos também atingiram a produção brasileira. Basta lembrar a seca no Sul do País, que diminuiu em mais de 30 milhões de toneladas a produção de arroz, trigo e milho. A alta nos preços dos alimentos na Europa no último ano tem conexão direta com a seca na Europa central e do leste, e não com qualquer produção destinada a biocombustíveis. O quadro é ainda mais diverso no que se refere ao etanol brasileiro. Como explicou em diversas oportunidades o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, inclusive em artigos publicados na Gazeta Mercantil, o Brasil tem 7,3 milhões de hectares cultivados com cana-de-açúcar e apenas 3,4 milhões deles voltados para a produção de etanol. E o mais importante: a cana representa menos de 5% da área cultivada pelo País, que atinge mais de 70 milhões de hectares. É bem diferente da situação norte-americana envolvendo a cultura de milho, por exemplo. É fato que a demanda por alimentos cresceu no mundo porque milhões de chineses, indianos e até latino-americanos passaram a consumir, nos últimos cinco anos, mais proteína animal, empurrando para cima o preço da soja e do milho. Essa demanda cresce há anos, e bem antes de que se falasse em outras alternativas energéticas. Biocombustíveis são um assunto novo que pede cautela nas deduções. Porém, é terreno propício para germinar ansiedades protecionistas de preocupados agricultores que vivem de subsídios, como ocorre nos EUA e na União Européia. Sem esquecer os demagogos, sempre à procura dos holofotes da mídia que algumas vezes os cargos em organismos internacionais oferecem. (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 2)