Título: O dia em que a força venceu o direito
Autor: Dallari, Dalmo de Abreu
Fonte: Gazeta Mercantil, 22/04/2008, Politica, p. A9

22 de Abril de 2008 - O dia 19 de Abril é, no Brasil, o Dia do Índio, data escolhida há alguns anos para homenagear "o primeiro habitante", desta imensa terra que hoje é o território brasileiro. Aparentemente a situação do índio mudou muito, desde o período colonial, quando alguns milhões foram dizimados por aventureiros, pois a própria Constituição brasileira afirma que ele, como pessoa humana, tem todos os direitos reconhecidos e assegurados a todas as pessoas. A par disso, o índio nascido no território brasileiro é cidadão brasileiro, gozando também de todos os direitos que a Constituição garante aos cidadãos. Além desses direitos, a Constituição garante expressamente aos índios o direito de permanecer nas terras tradicionalmente ocupadas por eles e o usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes. As terras indígenas, segundo a Constituição, pertencem ao patrimônio da União, mas têm destinação especial, que é a ocupação pelos índios. Evidentemente, seria absurdo pretender que os índios permanecessem isolados nessas terras, numa espécie de jardim zoológico de índios. O objetivo dos constituintes, informados das tremendas violências atualmente cometidas contra as comunidades indígenas, foi garantir a sobrevivência dos índios, constantemente atacados por aventureiros ambiciosos e sem escrúpulos. As próprias condições da vida contemporânea fazem pressupor que haverá, necessariamente, a convivência dos índios com a sociedade circundante, até mesmo para que eles possam gozar efetivamente dos direitos de seres humanos e cidadãos brasileiros. Essa convivência levará, inevitavelmente, a uma integração cada vez maior das comunidades indígenas à sociedade brasileira, o que já vem acontecendo em muitos lugares, onde índios e não-índios atuam juntos, inclusive na exploração de atividades econômicas, com proveito recíproco e obedecendo rigorosamente as disposições constitucionais quanto aos direitos dos índios e de suas comunidades. Nesses casos, o índio continua brasileiro e índio e tem os seus direitos respeitados. Fatos ocorridos nos últimos dias, sobretudo no Estado de Roraima, mostram que quando aventureiros ricos, ambiciosos e atrevidos invadem suas terras, inclusive cometendo crimes, os direitos dos brasileiros índios não existem na prática, pois autoridades e órgãos públicos que têm a obrigação constitucional de dar garantia a esses direitos agem em sentido oposto, patrocinando os interesses dos invasores e até mesmo impedindo que instituições públicas cumpram o dever funcional de proteger os direitos agredidos. O caso mais escandaloso é o da reserva indígena Raposa Serra do Sol, localizada em Roraima e que ninguém duvida que seja território de ocupação tradicional dos índios, com direito, portanto, à proteção constitucional. Mandada para lá a Polícia Federal, os invasores anunciaram que fariam resistência armada para impedir o cumprimento da lei. Essa resistência configura crime de desobediência, claramente definido no Código Penal. Numa surpreendente decisão, o Supremo Tribunal Federal, impressionado pelas ameaças dos invasores, mandou sustar a ação da Polícia. E ao mesmo tempo o general comandante do Exército na Amazônia proclamou seu apoio aos invasores, deixando entender que não terá medo de enfrentar os que se opõem a eles, provavelmente referindo-se aos tanques e mísseis dos pobres ianomâmis. O pitoresco é que o general falava num Clube Militar no centro do Rio de Janeiro, "vestindo uniforme de combate camuflado", como noticiou a imprensa. O dia 19 de Abril de 2008, Dia do Índio, ficará assinalado como um dia em que a força venceu ostensivamente o direito, o dia em que ficou claro que a invasão de terras será tolerada e até mesmo protegida pelo Estado, se os invasores forem ricos e audaciosos e contarem com a conivência de autoridades públicas. (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 9)(- Jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da USP)