Título: Ouro e diamantes para sustentar a guerrilha
Autor: Quadros, Vaxconcelos
Fonte: Gazeta Mercantil, 05/05/2008, Política, p. A8

Brasília, 5 de Maio de 2008 - Os militares não impuseram apenas uma derrota militar ao PCdoB ao sufocar a guerrilha e exterminar seus 59 combatentes, cujos ossos foram deixados nas matas do Araguaia entre 1972 e 1975. Passados 33 anos do fim do conflito, personagens que estiveram no epicentro da Guerrilha do Araguaia, revelam que a estratégia de longo prazo traçada pelos comandantes da guerrilha para sustentar o território independente que os comunistas pretendiam criar eram as minas de ouro, diamante, cristais e o manganês do subsolo das serras da confluência entre Pará, Tocantins e Maranhão. A figura em torno da qual gravitavam as esperanças era o guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, comandante negro de mais de dois metros de altura, que tombou em 1974 depois de percorrer e esquadrinhar, durante mais de dez anos, toda a região onde a guerrilha foi organizada e depois varrida pelos militares. Com formação militar, engenheiro metalúrgico e de mina, era de longe o mais preparado do grupo. "O Osvaldão era dono de uma mineradora. Ele falava que com um metro cúbico de dinheiro compraria o Pará", lembra o ex-guia do Exército, João Pereira da Silva, que trabalhou ao lado do guerrilheiro no garimpo de diamantes de Itamirim, antiga localidade de São João do Araguaia, atualmente município de Brejo Grande. O ex-guia ainda é informante do coronel da reserva Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o prefeito de Curionópolis (PA). Pereira vigia a entrada e saída de estranhos no antigo porto de Apinagés, nas margens do Rio Araguaia, a 13 quilômetros da cidade de São Domingos do Araguaia. A 300 metros da casa onde mora, uma área ainda inóspita, localiza-se um cemitério que, segundo as suspeitas, abrigaria restos de guerrilheiros. O ex-guia era amigo de Osvaldão desde 1964. Quando, ao lado dele, escavou cascalho no garimpo de Itamirim e mais tarde na localidade de Tabocão, em Palestina do Pará, atrás de cristais, nada sabia sobre a guerrilha. Em 1971, um ano antes do ataque aos militantes do PCdoB, foi recrutado por dois tenentes, Lima e Régis, que o colocaram a par do plano subversivo e deram a ele um ultimato. "Eles foram bem claros: ou tu fica do nosso lado ou desaparece", jura Pereira. Caçador, garimpeiro, comerciante de peles e castanha como Osvaldão, Pereira não só aceitou, como se transformaria num dos mateiros de confiança de todos os comandantes. O último deles foi Curió. Conhecia profundamente a região e havia convivido com o comando da guerrilha o suficiente para dar aos militares a dimensão da ousadia do plano comunista. Os relatórios produzidos pelos serviços de informação transcrevem a observação segundo a qual "Osvaldão se apresentava como governador do Pará". As informações mais importantes sobre o fracassado plano de sustentação econômica da guerrilha deverão ser conhecidas em declarações e documentos que Curió vai revelar brevemente, no livro sobre a guerrilha que terá sua versão como fio condutor da história. Ele confirma, no entanto, que a exploração dos recursos minerais da região fazia parte da estratégia de longo prazo do PCdoB. "Eles queriam o domínio do território todo", diz o prefeito de Curionópolis. A área vem a ser exatamente o pedaço que engloba o Sul e Sudeste do Pará, nas bacias do Xingu, Araguaia e Tocantins, que os políticos da região querem emancipar com o nome de Estado do Carajás numa provável redivisão da Amazônia, em 2010. Curió diz que a opção militar pela eliminação dos guerrilheiros impediu que a região do Bico do Papagaio se transformasse numa zona sob o controle da guerrilha, como fazem hoje as Forças Armadas da Colômbia (Farcs) no país vizinho. Ao derrotar o PCdoB numa ação que acabou se transformando em caçada aos guerrilheiros, Curió conquistou também o papel de protagonista do processo de transferência de concessões de exploração dos recursos minerais de toda a região controlada pela Companhia Vale do Rio Doce (Vale). Mineração era, na época, assunto de segurança nacional sob a responsabilidade do homem que derrotara a ameaça guerrilheira. De seu quartel general em Serra Pelada e mais tarde na cidade por ele criada, deu todos os palpites sobre exploração de minério, assunto sobre o qual até hoje é consultado. A guerrilha estabeleceu seus destacamentos nas cercanias da Serra das Andorinhas, mas sabia do potencial mineral da região dos Carajás. Um dos textos produzidos pelos dirigentes comunistas, apreendido com os guerrilheiros mortos, descreve as "ricas jazidas da Serra Norte" - como era chamada por eles a Serra dos Carajás - e antes da eclosão do conflito, criticava a concessão "criminosa" de um enorme pedaço de terra próximo a Marabá ao grupo americano Steel S/A, mais tarde incorporado pela então estatal Vale do Rio Doce. Antes da guerrilha, as concessões de lavra haviam passado por outras três empresas, a Empresa de Mineração Xingu Ltda., a Meridional e a Amazônia Mineração S/A (Amsa), incorporada pela Vale quando a empresa ainda era estatal. Se formalmente Osvaldão tinha participação em alguma empresa de mineração, documentos ou informações ficaram em poder dos militares. O guia Pereira era personagem secundário na estratégia militar. Mas lembra que o interesse de Osvaldão e da geóloga Dinalva Conceição Teixeira, a Dina, a mais famosa das mulheres que pegaram em armas no Araguaia, era segredo de polichinelo entre os moradores que conviveram com os guerrilheiros e depois - voluntários ou recrutados à força - se tornaram bate-paus dos militares. Ele tem na ponta da língua número e data do decreto de concessão de lavra que, segundo afirma, pertenceu a Osvaldão. "É o 74.509 e estava registrado no 5 distrito do DNPM em Belém desde 1969 em nome da Xingu. A concessão era do Osvaldão e da Dina. Acho que os papéis sobre a empresa ficaram com os militares", afirma o guia. Entre os moradores da região que atuaram como garimpeiros antes da guerrilha, não há dúvidas de que a atividade de mineração ia além de um mero disfarce ao plano político. "Trabalhei para o Osvaldão no Garimpo de Matrinchã. Ele vendia os cristais em Araguatins e eu ficava com a metade do valor", conta com exclusividade o ex-guia Abel Honorato de Jesus. Em dois depoimentos, um ao Ministério Público Federal, em 2005, e o mais recente no último dia 25 de abril aos membros da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em São Domingos do Araguaia, Abelinho, como é conhecido, também fala da parceria com o guerrilheiro. Diz que ele e outros dois homens, um deles conhecido como Zé Alemão, trabalharam para Osvaldão por cerca de seis meses em 1970. Preso dois anos depois, apanhou dos militares e virou mateiro do Exército por conhecer a região e outros guerrilheiros. "Os militares achavam que eu era compadre do Osvaldão, mas não era." A preocupação da guerrilha com o potencial mineral da região aparece em outros documentos do PC do B, entre eles um roteiro com as propostas do partido para o Araguaia. Num dos itens, o autor do texto, provavelmente o comandante da guerrilha, o ex-deputado comunista Maurício Grabóis, fala em estimular a atividade garimpeira na região. "A existência do minério era do nosso conhecimento. O ouro e o diamante seriam a base de sustentação do movimento. Mas isso nem chegou a ser colocado em prática porque não deu tempo. Fomos atacados antes", afirma o ex-guerrilheiro Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho do Araguaia, militante do PCdoB desde 1962. Zezinho escapou do cerco militar no final de 1974 e, como mateiro experiente, retirou do Araguaia o dirigente Ângelo Arroyo - morto em São Paulo em 1976 no episódio que ficou conhecido como a Chacina da Lapa. A operação teve a participação de Curió. Dois anos antes do conflito estourar, o próprio Zezinho andou com Osvaldão pelas regiões do Xingu e Serra dos Carajás para traçar uma rota de fuga jamais usada pela guerrilha. "Nessa época a serra ainda era cabeluda", diz o ex-guerrilheiro, ao se referir ao local hoje conhecido como Serra Pelada. Osvaldão, segundo ele, se encantava com os fragmentos de ouro que encontrava ao esfarelar nas mãos terra e cascalho. Antes de se fixar no Araguaia, Osvaldão mexeu com garimpo na Chapada Diamantina, na Bahia, e na região de Rondonópolis, no Mato Grosso, quando já se dirigia à região do conflito com outros quadros do partido. No Araguaia também foi caçador, vendedor de peles (mariscador, segundo o linguajar local), comerciante de castanha e posseiro. Pobres, isolados e ignorados pelo governo, os camponeses do Araguaia encontrariam nos guerrilheiros a salvação para seus problemas emergenciais nas áreas de saúde, educação e produção agropecuária de subsistência. Figuras como Dina - uma geóloga que trabalhara no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) no Rio antes de seguir para a região -, o médico João Carlos Haas Sobrinho e Lúcia Maria de Souza, a Sônia, estudante de medicina no Rio, deixaram seus nomes marcados pela assistência aos moradores, que nada sabiam dos planos do PCdoB até o primeiro ataque militar, em abril do ano de 1972. O extermínio dos guerrilheiros - sem poder de fogo e isolados assim que as tropas especializadas entraram na mata a partir de outubro de 1973 - e o silêncio de comunistas e militares relegaram a questão do Araguaia a análises parciais, como se tudo não tivesse passado de um plano imediatista para derrubar a ditadura. Hoje, no entanto, está cada vez mais claro que os comunistas queriam o domínio do território e contavam com as riquezas minerais para garantir o futuro do movimento. "A idéia era criar um estado dentro do estado, como já havia sido feito em Trombas e Formoso", diz Zezinho. Antes de treinar seus militantes na China e optar pelo Araguaia, os comunistas haviam apoiado o líder camponês José Porfírio - preso em 1971 nas cercanias do Araguaia e até hoje desaparecido - na instalação República de Trombas e Formoso, que resultou da luta armada no Norte de Goiás, durou mais de uma década e só foi aniquilado com o golpe militar de 1964. Araguaia foi abortado, mas seria uma continuidade do movimento. (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 8)(Vasconcelos Quadros)