Título: Economia cresce mesmo com crises globais
Autor: Kemal, Dervis
Fonte: Gazeta Mercantil, 09/05/2008, Finanças, p. B2

New York Times, 9 de Maio de 2008 - Os últimos 15 anos têm sido caracterizados por crescimento mundial constante e acelerado, com três interrupções: as crises financeiras na Ásia e na Rússia em 1997, o estouro da bolha das ações das companhias ponto.com em 2001, e, mais recentemente, a crise financeira enraizada nas hipotecas subprime e nos veículos de investimento securitizados. Em todos esses três casos, a "euforia irracional" e a desregulamentação do setor financeiro produziram choques e travas para o crescimento econômico. A seqüência sugere que há um argumento sólido em favor da reforma da regulamentação do setor financeiro. A crise asiática foi causada pelos excessivos fluxos de capital privado para os mercados emergentes com contas de capital muito abertas e valor excessivamente alto de ativos negociados dentro desses mercados ou relacionados a eles. As reversões de fluxo de capital e as conseqüentes desvalorizações acarretaram colapso do crescimento nessas economias. A crise das companhias ponto.com estava ligada à valorização excessiva de ações relacionada ao estágio inicial de investimentos nas novas companhias de alta tecnologia, principalmente nos Estados Unidos. Mas os setores afetados representavam só uma pequena fatia dos valores totais de ativos nas economias avançadas. A nova crise estourou em meados de 2007 e sua repercussão ainda é sentida. Uma boa parte da liquidez disponibilizada para a economia mundial pelas políticas de expansão fiscal e monetária, após o estouro da bolha das ações das companhias ponto.com, foi direcionada para o mercado imobiliário. A combinação de liquidez, em parte devido às baixas taxas de juros nos EUA e no Japão, novos e complexos instrumentos de investimento e graves omissões de regulamentação do setor financeiro nas economias ricas, deram margem para uma nova bolha de ativos, centrada dessa vez no setor imobiliário e nos instrumentos financeiros associados. As novas economias de escala facilitadas pela revolução da informação, a integração financeira global, as mudanças regulamentares nos EUA que permitiram aos bancos comerciais se envolverem na área de banco de investimento e em outras atividades antes restritas, o surgimento dos fundos de hedge e de participações privadas produziram um setor financeiro dominante. No início dos anos 80, a participação do setor financeiro, tanto no valor agregado quanto nos lucros corporativos nos EUA, era cerca de 6%. Essa participação de ativos financeiros no valor agregado tem aumentado firmemente, chegando perto de 10% em 2006-07. A participação de lucros do setor corporativo, no entanto, escalou para extraordinários 40% em 2007 - que são aplicados num setor que por si mesmo não "produz", como é o caso dos automóveis, artigos de vestuário ou maquinaria, mas que serve para "intermediar e organizar" os recursos que são aplicados na produção. Os superbanqueiros, os gestores de fundos de hedge e os proprietários de companhias de participações privadas passaram a ser os novos "barões" do capitalismo do século 21 em muitos países. Muitos acreditam que esse papel demasiadamente ampliado do setor financeiro trabalha em favor de mais eficiência, derrubando os gerentes letárgicos, incentivando uma busca incansável por mais produtividade, e permitindo reestruturação constante que amplia a inovação por toda a economia. Ao mesmo tempo, os lucros imediatos se tornam uma motivação mais importante do que as considerações de longo prazo. É improvável que os projetos que exigem investimentos de longo prazo e grandes custos diretos, com os benefícios se acumulando por muitos anos, recebam apoio suficiente nesse ambiente no qual predominam os incentivos de curto prazo. A cruzada para obter lucros cada vez maiores, que propele o sistema, sempre alcança dimensões insensatas. A taxa de retorno sobre ativos financeiros, em média e no longo prazo, deve refletir a taxa de retorno na economia real. Essa taxa de retorno pode ser maior do que a taxa real de expansão do Produto Interno Bruto (PIB), mas não se pode esperar que seja múltiplas vezes a taxa real de expansão do PIB para sempre. Se o crescimento real numa economia for de 3%, uma taxa que, segundo os analistas, a produção latente não pode facilmente superar de forma sustentada na maior parte das economias avançadas, então é insensato insistir em taxas de lucro de dois dígitos ano a ano. Naturalmente, globalização significa que o capital pode escapar das restrições domésticas. Mas então o crescimento real da economia mundial estabelece limites de longo prazo sobre qual tipo de retorno é viável. As periódicas bolhas de ativos podem refletir uma pressão excessiva sobre o setor financeiro para prometer retornos que, no agregado, não podem ser alcançados. Essas promessas continuam a ser feitas, no entanto, e as bolhas de ativos continuam surgindo porque as estruturas de incentivos no setor financeiro são assimétricas: os gestores colhem grandes benefícios pessoais de lucros de curto prazo, mas pagam preços pessoais comparativamente pequenos quando as bolhas estouram. Para evitar a repetição constante do cenário, é desejável regulamentar o setor financeiro para que os incentivos sejam mais simétricos, as perdas tenham graves conseqüências financeiras para aqueles cujas decisões as acarretaram, e os prêmios sejam vinculados ao sucesso de longo prazo. Se quisermos colher os benefícios das oportunidades legais de forma constante, em vez de sermos sujeitos a choques recorrentes do setor financeiro, pode ser o momento de atacar as causas desses choques em termos de regulamentação do setor financeiro que se concentra na natureza dos problemas estruturais no setor, em vez de usar instrumentos macroeconômicos rudimentares. Tudo isso é importante para o mundo em desenvolvimento: problemas regulamentares podem causar queda significativa das taxas de crescimento na Índia e na China. Elas podem tirar da África a primeira chance real em décadas de acelerar seu progresso. Os países devem iniciar o prometido projeto de construção de governança global melhor e mais eqüitativa, sem falar no relacionado ao setor financeiro. Isso inclui a reforma da Organização das Nações Unidas (ONU) e do sistema de Bretton Woods, de forma que o mundo interdependente no qual vivemos seja regulado para que se permita a participação mais ativa dos países de economias emergentes do Hemisfério Sul e que os benefícios se acumulem de forma mais eqüitativa por toda a economia mundial. (Gazeta Mercantil/Finanças & Mercados - Pág. 2)(Kemal Dervis - Kermal Davis é administrador dos Programas de Desenvolvimento da ONU )