Título: Reinício da temporada de idéias ruins
Autor: Maciel, Everardo
Fonte: Gazeta Mercantil, 23/05/2008, Opiniao, p. A3

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23 de Maio de 2008 - Defendi a manutenção da CPMF. Mais em razão das virtudes de uma tributação sobre movimentação financeira, menos por conta de eventuais desequilíbrios fiscais. Entendia que, na hipótese de redução de carga tributária, existem outros tributos - nomeadamente a contribuição patronal para previdência social - cuja incidência deveria, prioritariamente, ser revista. Não se pode desconhecer que essa contribuição constitui um óbice à geração de empregos formais e ao aumento da renda do trabalhador, além de ser nociva à competitividade dos produtos brasileiros no exterior, pela impossibilidade de proceder-se à sua desoneração nas operações de exportação. Hoje o momento tem um contorno político bem distinto. A CPMF foi rejeitada pelo Congresso Nacional. A argumentação utilizada pelo governo para patrocinar sua manutenção revelou-se uma farsa, desde as alegações de necessidades fiscais até sua utilização como instrumento auxiliar no combate à sonegação e delitos de natureza financeira e cambial. Dizia Bernard Shaw que "uma coisa certa não é uma coisa certa, é uma coisa certa na hora certa". É uma homenagem ao senso da oportunidade, que não se confunde, como é óbvio, com oportunismo. Cogita-se de recriar a CPMF para financiar a expansão das despesas com saúde pública. O governo diz que não tomará a iniciativa de propor a medida, pelo risco de perder no embate congressual, porém acolheria de bom grado se parlamentares assumissem esse ônus. Essa atitude, para dizer o mínimo, é francamente oportunista. Além disso, torna evidente que o governo se deixa guiar não pela convicção, e sim por uma conduta que converte as questões em um mero jogo, presidido pelo narcisismo e pela superficialidade. Política certamente é algo mais sério. No ensaio para recriar a CPMF, aventou-se, no âmbito parlamentar, efetivar-se sua implementação por meio de lei complementar, na conformidade com o que estabelece o art. 195, § 4, da Constituição. Essa norma admite a criação, mediante lei complementar, de outras fontes de financiamento da seguridade social, distintas daquelas preconizadas no caput do mesmo artigo (folha de salário, receita, faturamento, lucro). Ocorre, entretanto, que essa instituição se sujeita às exigências do art. 154, inciso I, da Constituição - dentre elas, a não-cumulatividade. Não-cumulatividade quer dizer que a incidência de um tributo em cada etapa de um processo considera os créditos da etapa anterior e transfere, caso exista uma nova etapa, para a seguinte. Esse conceito originariamente se aplicava apenas a impostos sobre consumo, a exemplo do ICMS e do IPI. Mais recentemente, foi estendido a contribuições, tais como o PIS e a Cofins. No caso da tributação sobre movimentações financeiras, a incidência é claramente cumulativa, o que faculta concluir que a recriação da CPMF, mediante lei complementar, é induvidosamente inconstitucional. Houve, também, quem falasse em recriá-la por meio de uma contribuição de intervenção no domínio econômico (Cide). Nesse caso, já se pode falar em ignorância crassa em matéria tributária. Na volúpia por encontrar fontes para financiar a expansão dos gastos com saúde, volta-se a falar em aumento na tributação de cigarros e bebidas alcoólicas, sob alegação de que esses produtos são responsáveis por doenças que oneram os serviços de saúde. Ainda que seja procedente a alegação, não se pode fazer uso da tributação para realizar expedições punitivas, como proclamava a superada doutrina dos impostos do pecado ("sin taxes") que pretendia uma pesada tributação sobre tabaco, bebida e jogo, entendidos como vícios. À época, felizmente, não eram significativas as atividades do narcotráfico. Caso contrário, poderia ocorrer a idéia de também taxá-las. A experiência já nos ensinou que tributo em excesso sobre determinados produtos somente produz sonegação e contrabando. As enormes vantagens da evasão passam a justificar o risco, na óptica dos sonegadores. O que é lamentável nesse debate é que não se discute a eficiência do gasto. Estudos mostram que, no contexto dos países com mesmo grau de desenvolvimento, temos o mais elevado gasto per capita na área da saúde pública. Alguém tem dúvida quanto à ineficiência desses gastos, como de resto sucede com quase todos os serviços públicos? Tomemos, entretanto, por hipótese, que haja necessidade de expansão das despesas com saúde. Não parece fazer sentido elevar a tributação, quando se constata um excesso de receitas orçamentárias que já ultrapassa R$ 18 bilhões. E mais: dia após dia são concedidos aumentos de vencimentos de servidores públicos, anuncia-se a criação de um fundo soberano para financiar investimentos privados no exterior tendo por base sobras orçamentárias, a anunciada política industrial patrocinou renúncia fiscal correspondente a alguns bilhões de reais, novos e discutíveis órgãos são criados (como a TV Pública). Decididamente, é necessário pôr um pouco de ordem nessa loucura. Salvo se a política fiscal se converteu em um torneio de desperdício. kicker: A proposta de nova CPMF foi convertida pelo governo em mero jogo narcisista (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 3) EVERARDO MACIEL* - Consultor tributário e ex-secretário da Receita Federal. Próximo artigo do autor em 12 de junho)