Título: O tiro pela culatra
Autor: Ribeiro, Diaulas Costa
Fonte: Correio Braziliense, 23/04/2011, Opinião, p. 15

Promotor de justiça, doutor em direito penal, professor da Uniplac-Brasília e da Universidade Católica

O Correio Braziliense publicou domingo 17 de abril matéria sobre novo sistema pericial para confronto balístico, que vem a ser uma solução muito próxima daquelas já utilizadas para investigação criminal por meio de comparação de impressões digitais e de perfis de DNA. Hoje é possível, diante de um fragmento deixado em local de crime, confrontá-lo com milhões de impressões digitais e identificar sua origem por meio do Automatic Fingerprint Identification System, ou sistema Afis (pronuncia-se êifis), disponível no Instituto de Identificação do Distrito Federal. Por seu lado, já passou da hora de se implantar no país o Combined DNA Index System (Codis), um banco de DNA com plataforma cedida pelo FBI (polícia federal dos EUA) e que permitirá investigar sistematicamente a autoria de crimes com emprego da genética.

Assim como o DNA e as impressões digitais, quase todas as armas de fogo deixam marcas exclusivas e idênticas nos projéteis que deflagram. Chamadas de microestriamentos, são características únicas que permitem, a partir de um projétil incriminado ¿ aquele normalmente encontrado no cadáver, extraído durante cirurgias em vivos ou localizado no local dos fatos ¿, identificar a arma que produziu o disparo.

Há armas que não deixam ¿impressão digital¿, as chamadas ¿armas lisas ou de alma lisa¿, em oposição às demais, ¿armas raiadas ou de alma raiada¿. Mas a exceção não põe em risco o sistema. Estudo que realizamos em 2000-2002, publicado nesse mesmo jornal, demonstrou que a maioria absoluta das mortes ocorridas no Distrito Federal foram causadas pelo disparo de um projétil calibre .38, oriundo de revólver de fabricação nacional. A realidade dos estados não é diferente; a nossa não mudou desde então.

O sistema agora implantado no Instituto de Criminalística possui uma base de dados alimentada por imagens de projéteis incriminados, com a possibilidade de se fazer buscas e encontrar projéteis idênticos, permitindo esclarecer crimes a partir da identificação de sua origem. A experiência demonstra, contudo, que é mais comum a apreensão apenas dos projéteis, o que não soluciona a investigação se não se identificar de qual arma partiram e, por consequência, quem é o proprietário.

Por isso, a grande utilidade dessa base de dados pode ser outra. Como toda arma de fogo tem sua ¿impressão digital¿ gravada no momento em que é fabricada e não pode ser alterada, raspada ou apagada, uma lei federal poderia determinar aos fabricantes e importadores que colhessem essa impressão com a arma ainda virgem, antes de ser posta à venda. A informação seria entregue à Polícia Federal e introduzida na mencionada base de dados, com acesso livre para as demais polícias e o Ministério Público, destinatário da investigação e responsável pelo controle externo da atividade policial. Para as armas já vendidas legalmente, caberia à Polícia Federal colher a respectiva ¿impressão¿ quando da renovação do registro ou do porte. Para as armas já apreendidas pela Justiça, poderia ser feito o mesmo procedimento antes de enviá-las para destruição, assegurando-se prova para crimes ainda não elucidados.

Para que essa proposta funcione, é necessária a integração das bases de dados atuais, o Sinarm, da Polícia Federal, e o Sigma, do Exército. Também poderá ser feita a marcação dos projéteis. Cada fabricante usaria uma liga metálica diferente, com padrão estabelecido pelo comando do Exército, permitindo, igualmente, alguma forma de rastreio. Essas providências desacreditarão o discurso alegórico sobre o contrabando das armas que ¿matam o Brasil¿ e permitirão políticas de controle mais eficazes.

Essas propostas não impedirão de maneira absoluta a ocorrência de crimes, mas reduzirão com suficiência a impunidade nas infrações praticadas com armas de fogo. Como todo criminoso acredita que a impunidade é uma possibilidade considerável, a maioria dos que miram os outros pensará mil vezes antes de teclar o gatilho se souber que a polícia já dispõe do ¿perfil genético¿ da arma, e que não fará qualquer diferença vendê-la, destruí-la, desmontá-la, raspar o número ou trocar o cano.

Por falar em cano, faço parte dos derrotados no referendo de 2005. Integrei a frente contra as armas. Mas se 64% do povo brasileiro votou pelo direito de tê-las, não conheço ninguém que tenha votado pela impunidade dos crimes praticados com elas. Logo, precisamos, com urgência, de mecanismos legais que façam o tiro sair pela culatra.