Título: Em Porto Príncipe, escassez e favelização estão em alta
Autor: Severo, Rivadavia
Fonte: Gazeta Mercantil, 13/06/2008, Internacional, p. A12

Porto Príncipe, 13 de Junho de 2008 - A capital haitiana é uma grande favela. Luz e água são artigos escassos. O comércio é praticamente todo informal e a segurança, dividida entre a polícia local e os militares da Organização das Nações Unidas (ONU), é uma área de instabilidade permanente. É nesse cenário que as Forças Armadas Brasileiras comandam a Força de Paz da ONU no Haiti há quatro anos, um país que tenta se recuperar de mais uma guerra civil. Além da segurança, o Brasil promete cooperação para recuperar a infra-estrutura básica do país e dar um impulso para a combalida economia. Há duas semanas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve no país em uma visita relâmpago e firmou seis protocolos que serão assinados no dia 30 de agosto, quando o presidente haitiano, René Prevál, deve ir a Brasília. Na quinta-feira da semana passada, o Brasil trocou a sua guarda no país. Entraram os soldados do 9 Contingente, no lugar dos da 8. O General Heleno que comandou o 2 Contingente foi para a cerimônia. Muitos dos que estão chegando ao país caribenho são da Amazônia, sua atual área. Ele afirma que a época dos confrontos armados já passou. Faz coro com todos que estão a tempo no país que dizem que a situação "melhorou muito" nos últimos meses. Apesar da visão otimista dos veteranos, os soldados que estão chegando agora ao Haiti vão encontrar um caos. A agricultura se sustenta com a produção de cana-de-açúcar, manga, milho e arroz, mas a produtividade caiu muito. Depois da guerra civil, as plantações são praticamente de subsistência. Os rios não são perenes e só 0,5% da cobertura vegetal nativa resistiu às queimadas para a produção de carvão vegetal, a principal fonte de energia para cozinhar alimentos no país. Os principais recursos naturais são o mármore e o calcário cujas explorações estão estagnadas. Segundo dados do exército brasileiro, a luz chega apenas a 20% das casas e a água encanada a 30%. A média da expectativa de vida é de 53 anos e o analfabetismo atinge a 47% da população. Nas áreas mais reprimidas economicamente da capital haitiana, é normal ver crianças em trajes escolares convivendo com outras seminuas que vivem em barracos que fazem qualquer favela carioca parecer uma casa de classe média. Em lugares como Cité Soleil, o último ponto de resistência das gangues que resistiu ao domínio dos militares brasileiros, o Ponto Forte que foi ocupado pelo exército brasileiro no começo de 2007, ainda está crivado de balas. A chamada Casa Azul é um sobrado de três andares de onde se pode vigiar todo o bairro, nas proximidades da área portuária. No lugar, a pobreza extrema é uma realidade cotidiana. Os mercados públicos funcionam em meio a valas de esgoto, onde se comercializa de tudo, desde alimentos até o carvão. A realidade dos mais abastados economicamente é diferente. Têm gerador próprio, podem ver televisão, ter geladeira e ouvir música. Tem até supermercado. Mas isso ocorre nos bairros altos, onde vive a classe média e os ricos que não fugiram para a vizinha República Dominicana. Na parte baixa, próxima ao porto, a luz é artigo de luxo. A sociedade haitiana é majoritariamente católica, cerca de dois terços, mas pratica o vudu que mistura o catolicismo com religiões africanas. As línguas oficiais são o francês e o Creóle, um dialeto que mescla o francês com línguas africanas e é falado pela maioria da população. As patrulhas das Forças Armadas Brasileiras, vasculham bairros como Bel Air, em busca de remanescentes das quadrilhas que se formaram depois da derrocada do presidente Jean-Bertrand Aristide em 2004. Em Bel Air, funciona, diariamente, uma feira informal que vende produtos de primeira necessidade. O local foi apelidado pelos militares brasileiros de "Cozinha do Inferno". Ali convivem mulheres, homens, crianças e animais. Restos de casca de milho e de bagaço de cana são disputados por cães e porcos, em condições de higiene deploráveis. As moscas estão em todos os cantos e as necessidades fisiológicas são feita à céu aberto, no meio da feira. O cheio beira o insuportável. À noite, os comboios de Urutus, carros blindados brasileiros, patrulham as ruas estreitas do bairro, mediante a aparente indiferença da população. O bairro era pró-Aristide e foi palco de intensos enfrentamentos entre os Chimères, gangues que assumiram o poder em vários bairros da capital, depois da queda de Aristide, e as tropas da ONU, sobretudo as brasileiras e jordanianas. A missão brasileira tomou corpo em 2004, quando assumiu a missão de desarmar e desmobilizar os ex-militares que haviam formado milícias por todo o país e enfrentar as gangues. Apesar do clima de guerra, as pessoas voltaram a ter segurança para circular nas ruas, as escolas básicas estão funcionando e os alunos vão uniformizados para as salas de aula e os automóveis circulam pelo trânsito caótico da cidade, onde a noção de contramão é vaga e os acidentes são constantes. Até um restaurante simples, o "La Masion" abriu suas portas, nas proximidades do Quartel General da ONU. "Tá melhorando, tem gente que respeita os semáforos", observa um militar brasileiro. A favelização de Porto Príncipe avançou sobre as áreas de moradia da classe média. Há duas quadras do Palácio Nacional existem casas paupérrimas, com aberturas e tetos de lata e o lixo se acumula nas ruas. Qualquer manifestação, acaba nas portas da "Maison Blanche", como ocorreu na semana passada, quando cerca de mil pessoas protestaram contra a falta de segurança e a crescente onda de seqüestros. Durante os protestos contra a alta dos preços dos alimentos que escassearam ainda mais a oferta de comida, no começo de abril desde ano, o conflito acabou com cinco mortos e a queda do gabinete do presidente René Préval. Ele foi eleito em 2004, mas seu governo está em crise. Desde abril não tem um chefe de governo. Desde então, Préval tenta emplacar um novo primeiro-ministro, sem sucesso. A moeda local é o gourde, mas o que realmente vale é o dólar norte-americano. Uma lata de coca-cola custa US$ 0,5 pouco para os turistas que podem freqüentar praias por US$ 1 a US$ 4 por dia, em oásis isolados no sul do país. Mas praticamente inacessível para os haitianos que vivem abaixo da linha da pobreza, em sua maioria, 60% vive com menos de US$ 2 por dia. No país de apenas 27 milhões de quilômetros quadrados, do tamanho do estado de Sergipe, vivem 8 milhões de pessoas. Apesar dos parcos recursos econômicos, as pessoas se vestem de forma elegante. Calça e camisa para os homens e vestidos coloridos para as mulheres. Nos esforços para reconstruir o país, Préval pediu ao presidente Lula mais cooperação policial e investimentos em infra-estrutura e menos tropas em seu país, há duas semanas. Hoje o Brasil mantêm um efetivo de 1.250 homens no Haiti, dos 7.060 da ONU. Sendo 850 na infantaria, 150 no batalhão de engenharia e os outros 250 distribuídos entre fuzileiros navais e aeronáutica. (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 12)()