Título: Nem tudo mudou na frente externa
Autor: Queiroz, Silvio
Fonte: Correio Braziliense, 23/04/2011, Mundo, p. 17

Nas entrelinhas e nos semitons, que é onde se escreve e se diz muito daquilo que realmente conta na diplomacia, o Planalto e o Itamaraty começam a sinalizar algo que, até pelo natural interesse jornalístico nas novidades, ficou ofuscado durante esses primeiros meses do novo governo. Na viagem à China, em especial, a presidente Dilma Rousseff enfatizou algumas linhas firmes de continuidade com a política externa da era Lula. Entre elas, um componente fundamental da orientação que preside desde 2003 o esforço de inserção do país na nova ordem internacional: a opção por alinhamentos múltiplos e não excludentes, embora nem sempre complementares.

Em português claro, a mensagem captada pelos interlocutores do Brasil foi de que a principal parceria comercial no momento é com a nova locomotiva da economia mundial. ¿O que se comenta é que Dilma ofereceu aos chineses tudo o que os americanos tinham acabado de pedir¿, relatou reservadamente para a coluna um diplomata cujo governo saboreia a sensação de que os Estados Unidos continuam um tanto a escanteio. Esse representante mencionou os acordos de cooperação com vistas à Copa e às Olimpíadas, além das iniciativas concretas na área científica e tecnológica, como exemplos de que a presidente voltou de Pequim com muito mais resultados do que Barack Obama, depois de ter visitado o Brasil.

Last ou least? E, já que a diplomacia se escreve em boa parte nas entrelinhas, nada como esquadrinhar o discurso da presidente para a turma de formandos do Rio Branco, nesta semana. De saída, pelo uso recorrente de palavras como ¿seguir¿, ¿continuar¿, ¿aprofundar¿, em referência à política externa da dupla Lula-Celso Amorim. Foi nessa perspectiva que Dilma apresentou a inserção do país no cenário global: jogando em várias posições, da OMC ao Conselho de Segurança, passando pelo G-20, mas com atenção prioriotária para a América do Sul e para articulações como a dos Brics e do Fórum Ibas.

A ordem em que as menções são feitas em um discurso nem sempre reflete uma hierarquia de relevo, e o inglês tem uma expressão que traduz com primor essa noção: last, but not least (por último, mas não de menor importância). Mas não deixa de ser notável que os Estados Unidos sejam citados apenas na parte final, ostensivamente depois de dois parágrafos dedicados à China. Os EUA mereceram algumas linhas na segunda metade do parágrafo seguinte. En passant, apenas um pouco menos do que a Europa, meramente citada (ao lado dos EUA) como parceira que ¿continuará sendo importante¿.

E, na medida em que a ordem significa alguma coisa, ao falar na Ásia a presidente citou, nesta sequência: China, Índia, Coreia do Sul e Japão.

Lawrence ficou para trás Foi ainda do governo Lula a decisão, que muitos consideraram temerária, de reconhecer unilateralmente o Estado Palestino nas fronteiras anteriores à guerra de 1967 ¿ ou seja, compreendendo a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, mais o setor oriental de Jerusalém. A declaração do Itamaraty foi a senha para que o gesto fosse acompanhado pelo resto do Mercosul e pela maior parte da vizinhança, na virada do ano. Nos últimos dias, a França deu sinal de que estuda dar o mesmo passo, e citou explicitamente o movimento da América Latina. Nicolas Sarkozy, que descobriu na revolta árabe um caminho para relançar a diplomacia francesa, trata de convencer os parceiros europeus, em particular o Reino Unido, que há um século tinha o célebre T. E. Lawrence (protagonista do épico imortal de David Lean) na vanguarda da expansão da influência da Coroa pelo Oriente Médio.

O cenário que se esboça, por sinal, já tira o sono de Israel. Com os palestinos decididos a levar a questão do reconhecimento de seu Estado para a Assembleia Geral da ONU, em setembro, o premiê Benjamin Netanyahu pode pagar com a própria cabeça por um revés diplomático de indiscutível repercussão.

Doha a quem doer O documento divulgado na quinta-feira pelo diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, esboçando o que poderia ser uma saída intermediária para o impasse na Rodada Doha, confirma alguns elementos captados em conversas reservadas com diplomatas europeus e de outras regiões. Primeiro, a constatação de que China, Índia e Brasil chegam à mesa com o cacife alto, seja por representarem mercados imperdíveis para o Ocidente em crise, seja pela posição que ocupam no comércio mundial de commodities como os alimentos. No diagnóstico de Lamy, a emergência desse novo polo provoca ¿uma clara fratura política¿ que, nas suas palavras, ¿não é superável hoje¿.

E, assim como algumas fontes ouvidas em Bruxelas, no quartel-general da União Europeia, o diretor da OMC constata disposição de algumas partes para contornar o impasse pela via de acordos bilaterais. Nesse terreno, a UE olha com atenção crescente para as negociações bloco a bloco com o Mercosul, que terão nova rodada em meados de maio.