Título: Lula está se tornando um mito
Autor: Raphael Bruno
Fonte: Gazeta Mercantil, 30/06/2008, Politica, p. A7

Brasília, 30 de Junho de 2008 - Petista histórico e, por muito tempo, um dos intelectuais de maior renome do partido, o sociólogo e professor titular aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Francisco de Oliveira, rompeu com o partido em 2003. Estava decepcionado com a política de rigor fiscal e com o conservadorismo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus principais companheiros no poder. Desde então, se tornou um dos críticos mais originais do governo. Em entrevista à Gazeta Mercantil, Chico, hoje com 74 anos e polêmico como nunca, afirma que Lula redistribui renda para os ricos e não para os pobres. Não faltam críticas também aos tucanos, ao candidato democrata à presidência dos Estados Unidos Barack Obama e até mesmo ao PSOL, partido cuja candidatura presidencial de Heloísa Helena o sociólogo apoiou em 2006. Elogios só para Hugo Chávez, que mesmo assim, segundo Oliveira, não sabe nem do que se trata seu "socialismo bolivariano". Gazeta Mercantil - Quais foram os pontos de dissenso do senhor com o PT? O partido já não dava sinais antes de ganhar as eleições de que não promoveria transformações profundas? Havia indícios. A nomeação do Henrique Meirelles para o Banco Central era um muito importante. O Banco Central cuida da moeda, e cuidar da moeda é mandar no Estado. Logo, um banqueiro de tradição, tucano, no comando do Banco Central, indicava que não seria um governo de transformações. Gazeta Mercantil - Algum outro indício? Como havia uma insatisfação muito grande com Fernando Henrique Cardoso, tudo ficou envolto numa névoa. Havia uma história no PT que era promissora. Havia indícios de uma transformação dentro do partido, mas nada era muito claro. A Carta aos Brasileiros, que é de julho de 2002, também foi uma espécie de novo evangelho do PT. Gazeta Mercantil - Em 2006 o senhor demonstrou esperança de que um segundo mandato de Lula pudesse passar por uma guinada à esquerda. Mas logo depois constatou que aquela avaliação foi um erro. Por quê a interpretação equivocada? Não houve equívoco. O que houve foi abertura de espaço para a política. Eu resolvi que era o momento de dar uma chance para que a esquerda do PT se recuperasse. Mas, evidentemente, ao contrário disso, o que se consolidou foi uma orientação conservadora. A esquerda do PT foi completamente sufocada. Parte dela se converteu. E a grande maioria do PT, não dos militantes, mas dos quadros mais importantes, já estavam numa posição francamente conservadora. Incluindo-se, principalmente, o presidente, que é o mais conservador de todos. Gazeta Mercantil - Existe alguma diferença significativa entre PT e PSDB? Não. São partidos muito parecidos. Nascidos de bases diferentes, mas que se igualam hoje num único projeto que lhes interessa, o poder. Não há nenhuma perspectiva de ação transformadora nem de um lado nem de outro. Gazeta Mercantil - E o discurso de parte do PT e de outros partidos, como PCdoB, PSB e PDT, de que caberia a esses partidos puxar o governo para a esquerda? (Risos) Você acha que PCdoB, PSB e PDT puxam algum governo para a esquerda? Eles são mais conservadores do que parte do próprio PT. Isso é argumento para estarem agarrados ao navio principal, que é o PT. Gazeta Mercantil - E a popularidade cada vez maior de Lula? Ele está se tornando uma espécie de mito, acima da política. A popularidade se deve ao fato de que houve uma retomada do crescimento da economia, ao programa Bolsa-Família. E a oposição não tem programa. O PSDB já realizou seu programa, não tem mais o que oferecer de novidade. E não é um partido popular. Gazeta Mercantil - E o programa Bolsa-Família? É um programa politicamente regressivo. Anula a transformação. Funcionaliza a pobreza. É um programa de apaziguamento da pobreza. Acho muito perigoso. Tende a mitificar a política. Gazeta Mercantil - Não há como melhorá-lo? Não. Este não é um programa de redistribuição de renda. A redistribuição de renda que Lula faz é a favor dos ricos e não dos pobres. São R$ 160 bilhões anuais de juros da dívida pública interna, contra R$ 8 bilhões do Bolsa-Família. Você tire a conclusão de para quem está sendo redistribuída a renda. Tem que substituí-lo por programas efetivos de redistribuição de renda, que não sejam essa migalha que conforta as almas piedosas. Gazeta Mercantil - O senhor disse no passado que o PT havia levado 15 anos para percorrer o mesmo caminho de moderação que a social-democracia européia levou cem anos para fazer. O PSOL, ao se aliar a partidos de centro nestas próximas eleições municipais, não teria levado apenas quatro? Não acho que seja disso que se trata, porque o PSOL não tem as bases nem do PT nem da social-democracia. Trata-se de um partido resumido a algumas lideranças parlamentares. Mesmo que haja uma retórica revolucionária, a realidade é outra. Mas não é a mesma coisa, inclusive porque não tem as benesses do poder. Você só se converte assim tão nitidamente a um programa que na verdade é o oposto do seu original quando alcança o poder. Aí a metamorfose pode ser completa. Não é o caso do PSOL ainda porque ele não tem poder nenhum. Heloísa Helena é uma personalidade tão carismática quanto Lula. Ela não tem propriamente um programa. Ela tem ela. E o partido vai atrás. Ela montou sua estratégia toda no ataque ao PT e aos tucanos. Isso rende numa eleição. Noutra não mais. Falta um programa mais consistente. Só o carisma resolve para elegê-la alguma coisa em Alagoas, mas no resto do Brasil não. Gazeta Mercantil - Como o senhor avalia a atuação do Exército nas favelas do Rio de Janeiro? Aquilo não foi surpresa. O Exército sempre tratou mal os pobres. Tem uma velha tendência intrínseca à ele de poder, de autoritarismo e de desprezo aos direitos humanos. Me surpreende só que não tenha acontecido antes. O Exército é uma força repressiva. Só não age porque não tem onde agir. Quando tem, mostra suas garras. Gazeta Mercantil - E as eleições nos Estados Unidos? O Obama é uma ilusão. Não vai mudar nada. Já está arreganhando os dentes para o Irã. Quero ver ele retirar o embargo à Cuba, se retirar de Guantánamo, se retirar do Iraque. Gazeta Mercantil - Nossa disputa PSDB-PT está se tornando uma espécie de versão tupiniquim da disputa democrata-republicana? A diferença é que somos brasileiros pobres e, eles, americanos ricos. O PSDB pensou que ia ser o partido da burguesia brasileira, realizar os sonhos de uma revolução burguesa que Fernando Henrique Cardoso um dia pensou que a ditadura faria. Mas isso é péssima sociologia e má política. Eles e o PT tendem sim, no longo prazo, a se parecer com republicanos e democratas. Gazeta Mercantil - No mês passado, o mundo lembrou os 40 anos do maio de 1968. Ainda é possível uma transformação radical da sociedade, a realização de uma utopia socialista? O como que é o problema. Não há ninguém capaz de descrever e isso não está ao alcance de nenhuma ciência social. Qualquer grande revolução é um fenômeno de erupção na história. Mas acredito, felizmente, que a história não terminou e que haverá transformações. Quando, onde e como, não me pergunte porque não sou Nostradamus. Gazeta Mercantil - Como o senhor avalia o processo da Venezuela? Vejo com muita simpatia. A Venezuela não tem instituições, os partidos se afundaram numa profunda corrupção e (o presidente Hugo) Chávez está tentando integrar o povo à política. Não nos esqueçamos que a Venezuela tem petróleo, e portanto é sempre alvo da ira norte-americana. Mesmo caso o Evo Morales, que não tem petróleo mas tem gás. Ele está tentando incluir os pobres da Bolívia na política pela via étnica. Na Bolívia, isso faz muito sentido, mas em outros países latino-americanos, como o Brasil e a Argentina, não. Você não faz política de classe pela etnia. Gazeta Mercantil - Mas essa proposta de socialismo bolivariano de Chávez pode mudar o modelo econômico? Socialismo bolivariano é um nome feliz, porque pega uma figura que na Venezuela faz sentido, está na imaginação. Mas Chávez mesmo não sabe do que se trata. O que interessa é integrar o povão na política e assim desequilibrar as forças dominantes de uma vez por todas. Pode ir além. Se quiser chamar isso de socialismo, chame, mas ainda não é o modelo clássico. Gazeta Mercantil - O senhor chamaria isso de socialismo? Não. Acho um grande movimento político, uma coisa extraordinária acontecendo num país muito pobre, apesar do petróleo. Ele está tentando construir uma nova Venezuela, mas eu não chamaria isso de socialismo. (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 7)()