Título: Mais uma tentativa para salvar Doha
Autor: Hessel, Rosana
Fonte: Gazeta Mercantil, 21/07/2008, Internacional, p. A10

As negociações da Rodada Doha terão hoje mais um dia decisivo, desta vez em Genebra, Suíça, na sede da Organização Mundial do Comércio (OMC). Cerca de 30 ministros-chaves - entre eles o das Relações Exteriores brasileiro Celso Amorim - foram convocados pelo diretor geral da OMC, Pascal Lamy, com a missão de tentar finalmente avançar para um desfecho da rodada de negociações voltada para a liberalização do comércio global antes de ela estourar todos os prazos históricos. As expectativas dos especialistas para um resultado positivo dos encontros ministeriais ao longo desta semana e que sinalize um fechamento da rodada neste ano são pouco animadoras. Há um consenso de que Doha não será concluída em 2008, como espera Lamy, que fez a convocação de olho nas eleições presidenciais nos Estados Unidos. Uma mudança de governo na maior economia global e maior importador mundial deverá travar novamente Doha por mais dois anos, alertou o diretor da OMC. Sem contar que, sem o "fast track" ou TPA (Trade Promotion Authority) - concessão ao Executivo para fechar acordos sem o aval do Congresso expirada em 2007 - há poucas chances de George W. Bush conseguir aprovar qualquer acordo de livre comércio junto à oposição democrata - tradicionalmente mais protecionista que os republicanos - que controla as duas casas justamente em um momento de crise econômica americana e de uma ameaça de recessão global. Mas ninguém aposta em um total fracasso da rodada, apesar de as últimas declarações de Peter Mandelson, representante de Comércio da União Européia (UE) se referirem para o fato de o momento ser crítico para Doha. Propostas na mesa O prato principal da mesa de negociações em Genebra serão os dois novos textos das propostas agrícola e industrial, respectivamente, pelos embaixadores Crawford Falconer, da Nova Zelândia, e Don Stephenson, do Canadá. Cada calhamaço tem mais de 100 páginas e dificilmente todos os pontos chegarão a ser discutidos. "O Brasil acredita que as negociações sobre agricultura ainda precisam de muito trabalho se os envolvidos quiserem que o encontro desta semana tenha resultado relevante", disse Amorim no sábado a jornalistas. O chanceler chegou a Genebra na sexta-feira e participou de reuniões bilaterais no sábado e no domingo. Para o diretor geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), André Nassar, um dos mais otimistas, a reunião não será um fracasso total pois os ministros deverão assinar uma declaração acordando os temas em que já existe um consenso. "Há uma chance maior para uma solução intermediária. Existe muito conteúdo para as discussões e ele não pode ser desprezado na reunião." "O acordo pode ser aprovado ao longo de 2009 e o importante é garantir que grande parte do esforço feito até agora seja consolidado e não seja jogado fora", acrescentou. A proposta agrícola tem mais ressalvas que o industrial é a máxima que circula em Genebra. Temas como subsídios, salvaguardas e acesso aos mercados dos países desenvolvidos são alguns dos pontos de bloqueio da rodada. Para Nassar, houve avanço no tema sobre os subsídios domésticos e falta agora os ministros acordarem os intervalos de corte. Mas pode haver retrocesso, afirmou, pois Argentina e Índia querem mais corte no teto dos subsídios, ente US$ 13 bilhões e US$ 16 bilhões - bem mais do que os EUA concedem atualmente. Além disso, informou, a fórmula de redução tarifária para acesso aos mercados está próxima de ser fechada, pois os países desenvolvidos já concordaram em um corte médio de 54% sobre as tarifas aplicadas. Nassar, no entanto, destacou que o maior contra-senso da proposta agrícola é o item sobre o mecanismo de salvaguardas para os países em desenvolvimento, permitindo um aumento de 15 pontos percentuais ou 15% nas tarifas atuais. "Será impossível se chegar a um acordo com este item no texto", disse. Os potenciais de perda para indústria brasileira neste caso são enormes, informou ele, citando como exemplo o fato de grandes compradores de produtos brasileiros, como a China, poder aumentar a taxa de importação de soja de 3% para 15% e da Índia, que poderá aumentar a taxa de importação de óleo de soja, de 45% para 60%. "Esse mecanismo é inadmissível e já enviamos uma carta para o chanceler Amorim. Esse é o ponto é para o Brasil sair da mesa de negociação. E esperamos que ele barre esse item durante a reunião em Genebra", disse Nassar. "Aprovar isso seria um retrocesso e não afeta somente a indústria de soja mas toda o setor agrícola nacional." Já o texto de produtos industriais (ou Nama, na sigla em inglês) tem menos ressalvas do que o agrícola e é possível que se avance mais, informou o diretor de negociações internacionais da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Mário Marconini. Ele elogiou o documento de uma forma geral. "Há avanços em relação ao anterior", afirmou ele , lembrando que o coeficiente da fórmula suíça de quanto é o corte e de acordo com o corte estão quase definidos. "Como texto, do jeito que está, ele é muito bom para ministros negociarem", disse. "Não é um texto fechado., ele abarca tudo aquilo que os ministros precisam decidir. Apesar de a distância em alguns termos ser grande, um acordo é factível. Havendo uma vontade política dos ministros, que têm autonomia de decisão, há elementos para um acordo razoável nessa área industrial", acrescentou Marconini que aposta em 51% de chances de um acordo. O negociador da Fiesp lembrou que os países desenvolvidos tentam empurrar mais de uma dezena de anexos para acordos setoriais, como químico, máquinas, calçados e têxteis, o contrário do que o Brasil espera. "O texto fala simplesmente que esses acordos setoriais são opcionais e Doha poderá ser aprovada sem esses anexos", disse. De acordo com ele, se houver uma pressão política para que o Brasil aceite esses anexos, um acordo está "absolutamente fora de cogitação". "O documento diz que esses anexos são opcionais e eles já foram recusados inúmeras vezes." Processo demorado A agenda de desenvolvimento de Doha foi inaugurada em novembro de 2001 na capital do Catar e sofreu várias interrupções devido ao travamento do diálogo entre os atuais 152 países membros da OMC. Esperava-se que fosse concluída em 2004. Lamy costuma falar que existem 50% de chances para se fechar um acordo e anunciou na semana passada que a liberalização do comércio injetaria anualmente de US$ 50 bilhões a US$ 100 bilhões na economia mundial. Agora, perto de completar sete anos, os especialistas acreditam que, na melhor das hipóteses, Doha será concluída somente no segundo semestre de 2009 ou até mesmo em 2010. Celso Amorim chegou a dizer que, se houver mais um adiamento, uma nova oportunidade de fechar Doha ressurgirá somente em 2012. E, se houver esse novo adiamento como alguns esperam, Doha poderá superar a Rodada Uruguai, considerada a mais longa negociação da história pelos estudiosos do assunto. Lançada em setembro de 1986 em Punta del Este, a Rodada Uruguai foi concluída somente em abril de 1994, quando foi assinado o tratado de criação da OMC em substituição ao Acordo Geral de Tarifas de Comércio (GATT, na sigla em inglês) pelos então 125 países membros e a organização efetivamente entrou em operação em janeiro do ano seguinte. Algumas estimativas de fracasso da reunião ministerial são bastante elevadas. Um dos mais pessimistas é o professor Amâncio Jorge de Oliveira, coordenador do Centro de Estudos das Negociações Internacionais (Caeni), da Universidade de São Paulo (USP), que aposta em 95% de chances de fracasso da reunião de Genebra. "Não houve avanço das partes que apontam para um cenário mais otimista. Apenas há um sentido de urgência diante das eleições americanas", disse. "Essa reunião é um último soluço para tentar destravar a rodada." Para Marcelo Coutinho, coordenador do Observatório Político Sul-Americano (Opsa), ligado ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) da Universidade Candido Mendes, as chances de adiamento das negociações são de 80%. Ele reconhece que as eleições presidenciais americanas, marcadas para novembro, tornam a possibilidade de o acordo de Doha para este ano ainda menor e, portanto, ele "terá mais chances de ser aprovado no segundo semestre de 2009". No caso de um novo adiamento, Doha conquistará um recorde de prazo. "Essa negociação (Doha) tem se arrastado ao longo dos anos. Em geral, essas rodadas demoram. Acredito que Doha poderá bater o recorde e acho que esta será a mais longa da história", disse Coutinho. Na opinião do pesquisador, um dos motivos dos inúmeros atrasos da rodada a falta de foco dos negociadores. "Essa é uma rodada do desenvolvimento, onde se pressupõe uma maior abertura dos mercados de forma que os países mais pobres sejam mais atendidos. Não é uma rodada para abertura dos mercados industriais na mesma proporção em que os desenvolvidos abrem os seus mercados agrícolas. Se Doha não avançar, acordos importantes para o Brasil, como o de livre comércio da UE com o Mercosul, continuarão travados.