Título: Pesquisa brasileira avança na busca pela cura do câncer
Autor: Nunes, Branca
Fonte: Gazeta Mercantil, 22/07/2008, Empresas, p. C1

Quase 3 mil metros quadrados de floresta, 3 mil árvores identificadas, 2,2 mil extratos, 132 possíveis medicamentos e uma esperança: encontrar a cura do câncer. Amparados nesses números, colhidos na maior floresta tropical do planeta, a Amazônia, os cientistas engajados no Projeto Rio Negro, em curso desde 1992, deram mais um passo rumo à materialização do sonho. Há menos de um mês, o grupo, até então patrocinado exclusivamente pela Universidade Paulista (Unip), ganhou um importante aliado: o Hospital Sírio Libanês selou a parceria com um investimento de US$ 1 milhão, que culminará, no prazo de dois meses, na inauguração de um laboratório de purificação de substâncias. "Abrimos um campo de pesquisa sem precedentes no Brasil", anima-se o médico oncologista e escritor Dráuzio Varella, um dos idealizadores do projeto. "A parceria entre a Unip e o Sírio é inédita no País. Além disso, estamos usufruindo da maior fonte natural do mundo para produtos farmacêuticos e bioquímicos: a Floresta Amazônica". Com 16 anos de vida, o projeto começa a mostrar resultados especialmente estimulantes. Dos 2,2 mil extratos pesquisados, 72 indicaram alguma atividade contra ao menos uma célula tumoral. Outros 50 mostraram reações contra bactérias resistentes a antibióticos, outra área pesquisada pelos cientistas. A singular aventura começou em 1992, quando Varella viajou para a Amazônia em companhia de alguns pesquisadores estrangeiros, entre eles o americano Robert Gallo, um dos descobridores do vírus da Aids. Ao contemplar a imensidão verde, Gallo perguntou quem estava pesquisando a floresta em busca de medicamentos. "Ninguém", respondeu Varella. A partir de então começou o processo de coleta das plantas, intensificado em 1998 - como a retirada do material precisa ser autorizada pelo Ibama, nem sempre as coisas correm com a desejável agilidade. A bordo do barco Escola da Natureza, da Unip, o grupo percorre a floresta em busca de árvores ainda não estudadas. Para facilitar o processo, há cinco anos foi demarcada uma região de 300 metros quadrados onde as plantas são coletadas. Os pesquisadores, comandados pelo biólogo Mateus Paciencia, fazem a classificação das espécies e o plaqueamento de todas as árvores com mais de 10 centímetros de diâmetro e 1,5 metro de altura. Trilhas O material coletado na floresta vai para o barco, onde é identificado, separado em diferentes partes (galhos, folhas, frutos e flores) e ensacado em porções menores. Em Manaus, uma primeira secagem o prepara para a viagem rumo a São Paulo. "Para encontrar uma planta que tenha uma função farmacêutica, podemos seguir algumas trilhas", explica Varella. "Uma é caminhar por aquela já percorrida e divulgada pelo conhecimento popular. Apesar de algumas dessas plantas funcionarem, normalmente são usadas para doenças menores, como gripe, desconforto intestinal, ou problemas no fígado. A outra é recolher o material aleatoriamente na natureza, testar e tentar descobrir para o que ele serve". O grupo de Varella prefere seguir a segunda opção. "A do elemento surpresa", conclui o médico. Em São Paulo o material segue diretamente para o laboratório da Unip, coordenado pela farmacêutica Ivana Suffredini. No projeto desde 1997, Ivana foi aos EUA duas vezes, onde aprendeu técnicas de cultivo de células tumorais in vitro e de purificação de substâncias, no National Cancer Institute (NCI). Os conhecimentos foram introduzidos no laboratório paulistano. Na Unip, o material é secado, moído, transformado em um extrato e armazenado. A "extratoteca" do projeto conta com 2,2 mil frascos. Outra parte do material vai para o herbário da universidade, que já possui 11 mil espécies catalogadas. Testes em laboratório O próximo passo é testar os extratos nas células tumorais e nas bactérias cultivadas em laboratório. Ivana pesquisa a atividade dessas substâncias em seis tipos de câncer - mama, cólon, pulmão, próstata, sistema nervoso central e leucemia - e em quatro bactérias. "Por causa do alto custo das pesquisas, para seguirem para a etapa seguinte, os extratos têm que matar pelo menos 15% das células tumorais", informa Ivana. "No caso das bactérias, o critério é a inibição completa do crescimento". É a partir daí que entra o Hospital Sírio Libanês. O investimento de US$ 1 milhão permitirá a continuidade e a ampliação do projeto, que consiste no fracionamento desses extratos. Nessa etapa, cada extrato é separado em frações para que se descubra qual substância contém o princípio ativo. Com essa descoberta, é possível começar os testes em animais. Parceria com o Sírio Libanês Até agora, o projeto está garantido. A Unip e o Sírio Libanês já preparam os seus biotérios de pequenos roedores e Varella acredita que dentro de dois anos essas experiências já sejam possíveis. "O fracionamento ficará mais concentrado no Sírio Libanês", diz o oncologista Riad Younes, diretor do hospital e também idealizador do projeto. "Apesar disso, o laboratório da Unip também realizará esse tipo de pesquisa. O que conseguimos com essa parceria foi, principalmente, a ampliação do espaço físico e a compra de equipamentos de ponta". Com um estatuto de cunho sócio-filantrópico, os médicos e pesquisadores envolvidos no Projeto Rio Negro não visam o lucro. Caso venham a ganhar dinheiro com os frutos dessa pesquisa, será inteiramente revertido para investimentos na Floresta Amazônica e suas comunidades ribeirinhas ou no próprio projeto. Do teste em animais ao teste em seres humanos a história é bem diferente. "Só os grandes laboratórios têm dinheiro para patrocinar os projetos a partir desse ponto", lamenta Varella. Calcula-se que o custo anual de uma pesquisa desse tipo salte para R$ 1 bilhão. A pesquisa em seres humanos passa por três etapas. A primeira é o teste em pacientes terminais, com o objetivo de averiguar como a substância age no corpo humano e encontrar, entre outras coisas, a dose certa para o tratamento. A segunda é feita em pessoas com tumores mensuráveis, para medir a eficiência do medicamento no combate às células tumorais. A etapa final consiste na realização de testes em um grupo com cerca de 600 pacientes de várias partes do mundo. São formados dois subgrupos. Um deles recebe o medicamento novo, o outro é tratado com uma droga convencional. Resultados positivos permitem a fabricação e comercialização do novo medicamento. "Como a eficiência não é uma garantia, nenhum governo ou empresa arrisca esse investimento", exemplifica Varella. "Pode ser que na última etapa tenhamos um resultado negativo, o que significa dinheiro jogado fora". Varella enumera detalhadamente as várias dificuldades a enfrentar para que o sonho vire realidade. Nada disso reduz seu entusiasmo. "Nossa pesquisa é inédita no País", repete o médico. "Há muito tempo, parei de buscar exclusivamente a cura do câncer. Caso isso aconteça, certamente não estarei mais aqui para ver. O principal fruto desse projeto é o legado científico que estamos deixando para nossos filhos e netos. É o Brasil pesquisando, em nível de igualdade, com os países mais desenvolvidos do mundo".