Título: Quadro compromete o abastecimento
Autor: Cardoso, Denis ; Scrivano, Roberta
Fonte: Gazeta Mercantil, 12/09/2008, Nacional, p. A9

12 de Setembro de 2008 - O protesto de opositores ao governo da Bolívia, que resultou nesta semana no corte de parte do fornecimento de gás natural ao Brasil e no acionamento de um plano de contingência por parte da Petrobras, é apenas a ponta do iceberg do problema vivido pelo mercado brasileiro em relação ao combustível fóssil, segundo analistas e representantes de empresas ouvidos pela Gazeta Mercantil. Além do atual quadro de desabastecimento no País - não há gás suficiente para alimentar todos os setores de consumo (usinas termelétricas, indústria, veicular e residencial) -, os consumidores vêm amargando um forte aumento de preço, tanto do produto boliviano quanto do insumo retirado do solo nacional. No primeiro semestre do ano, os gastos com o gás importado da Bolívia cresceram quase 85%, para US$ 1,380 bilhão, em relação aos US$ 748 milhões de mesmo período de 2007, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Esse aumento, repassado de maneira integral às distribuidoras nacionais, é explicado pela valorização de 38,5% no preço do combustível no mesmo período, cujo valor médio subiu de US$ 4,62 por milhão de BTU (Unidade Térmica Britânica) no primeiro semestre do ano passado para US$ 6,40 por milhão de BTU nos primeiros seis meses deste ano. Em volume, as importações do gás boliviano no período aumentaram 23%, segundo a ANP. "Enquanto formos dependentes da importação, principalmente de países instáveis como a Bolívia, o preço do gás continuará a `bel prazer¿ dos exportadores", afirma o engenheiro civil e consultor Humberto Viana Guimarães, para quem o governo errou ao tornar o Brasil altamente dependente do produto boliviano, em vez de investir em infra-estrutura interna para escoar o insumo explorada no próprio País. "Demos prioridade para o Gasbol (o gasoduto de 3,150 mil quilômetros que transporta o gás boliviano aos estados brasileiros) e deixamos de investir nos nossos próprios dutos e ramais", afirma. Segundo o consultor, por falta de infra-estrutura, a Petrobras e outras empresas do setor deixam de aproveitar 15 milhões de metros cúbicos de gás por dia, ou seja, quase a metade da quantidade importada diariamente da Bolívia, de 31 milhões de metros cúbicos. Explica-se: na atividade de extração do petróleo, dependendo do perfil do poço explorado, o gás natural vem associado ao óleo. Assim, como as companhias petrolíferas não têm condições de colocar no mercado todo o combustível retirado - por falta de infra-estrutura -, a única saída é reinjetar no solo parte do volume do gás extraído ou queimá-lo. "É um grande contra-senso que de um lado gastemos US$ 1,380 bilhão em importações somente no período de seis meses e de outro queimemos e reinjetemos um grande volume de gás", diz. Segundo o diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE), Adriano Pires, o avanço do preço do combustível boliviano no primeiro semestre acompanhou a disparada do petróleo no período. "O contrato com a Bolívia estabelece reajustes trimestrais em função de uma cesta de óleos no mercado internacional. Como o petróleo subiu muito no período - para acima de US$ 120 o barril -, o gás acompanhou esse movimento", diz . No mercado interno, o gás vendido pela Petrobras aos distribuidores também tem subido consideravelmente de preço, embora não seja possível apontar um valor único para o combustível nacional, pois sua cotação depende de muitas variáveis, tais como região distribuidora, se o consumidor é temporário ou cativo, além do volume comprado e o segmento de atuação no mercado. No entanto, em junho último, com base em seu reajuste anual, a Companhia de Gás de São Paulo (Comgás), maior distribuidora de gás encanado do Brasil, passou a cobrar 17,6% mais dos cerca de 700 mil consumidores residenciais situados na área de concessão da distribuidora. Para a indústria e o segmento de gás natural veicular (GNV), o reajuste no estado de São Paulo foi de 28% (média entre vários setores) e 40,82%, respectivamente. A Comgás garantiu, ontem à tarde, por meio de comunicado à imprensa, que a sua distribuição não foi afetada pelo corte boliviano. "Até o presente momento não houve qualquer redução no suprimento e, portanto, o fornecimento a nossos clientes continua normal", afirma a empresa. A companhia, porém, diz que já existe "um plano de contingência para ser colocado em prática caso seja necessário. "Em qualquer cenário está garantido o abastecimento de gás ao setor residencial e aos serviços essenciais, como hospitais", diz o comunicado. Segundo Daniela Santos, advogada do escritório L.O.Baptista Advogados, o impacto imediato da redução do suprimento do gás boliviano reflete na realocação do suprimento para os consumidores considerados prioritários. "No Brasil, no curto prazo, o racionamento de gás deverá resultar no desabastecimento temporário (até a reparação do gasoduto) de algumas indústrias de São Paulo e no sul do País, que utilizam o combustível", afirma. Para Pires, o diretor do CBIE, entretanto, o mercado de São Paulo - maior consumidor nacional de gás - passa por uma fase de oferta e demanda bastante ajustada, o que coloca o estado "na ante-sala de racionamento". "A secretária de Energia de São Paulo (Dilma Pena) tem em mãos um estudo que aponta que a oferta em São Paulo não consegue acompanha nem mesmo o crescimento vegetativo do mercado", afirma Pires, referindo-se ao crescimento econômico do País. Falta de transparência Para o superintendente da Associação Técnica Brasileira das Indústrias Automáticas de Vidro (Abividro), Lucien Belmonte, setor que consome diariamente cerca de 1,5 milhão de metros cúbicos de gás, "não há uma regra clara em relação ao cálculo do preço gás. "Dizem que o preço do gás tem a ver com o do petróleo, mas vimos o barril bater os US$ 140, para depois seguir uma trajetória de baixa até cair para perto de US$ 100. No entanto, até agora, a cotação do gás não acompanhou esse movimento de baixa", afirma Belmonte. "É preciso ter uma diretriz, acrescenta o superintendente da Abividro, para salientar que o "Brasil é o país que tem o gás mais caro do mundo". "Isso prejudica a competitividade brasileira. Nunca tivemos regras claras neste setor e, há muito tempo, sentimos escassez do insumo". Segundo o diretor do CBIE, diante da atual incapacidade da Petrobras em elevar rapidamente a sua produção interna de gás e do problema com os bolivianos, a estatal petrolífera não tem encontrado outra saída senão promover a redução de consumo por meio da elevação artificial de preço. "Essa é a maneira que a Petrobras encontrou para desestimular o consumo de gás no País, ou seja, é uma espécie de racionamento econômico, estratégia utilizada pela estatal para evitar o racionamento físico", afirma Pires. Para Pires, o Brasil está longe de resolver o problema de abastecimento de gás. "A crise vai perdurar pelos próximos cinco anos, até que a Petrobras coloque em prática o projeto de investimentos na malha de gasodutos", diz. (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 9)(Denis Cardoso e Roberta Scrivano)