Título: Crise global expõe fragilidade do balanço de pagamentos
Autor: Lavoratti, Liliana
Fonte: Gazeta Mercantil, 18/09/2008, Nacional, p. A9

São Paulo, 18 de Setembro de 2008 - O agravamento da crise financeira global expõe a tendência de fragilidade nas contas externas do Brasil, que até agora estava despercebida em meio a tantos indicadores econômicos favoráveis. O que mais preocupa não é tanto o tamanho do déficit em conta corrente, mas a velocidade da inversão de sinais, inclusive nas condições de financiamento do rombo, com a queda da entrada líquida de recursos e o aumento na remessa de rendas ao exterior. Em outras palavras, um duplo movimento perverso, relacionado ao quadro de crise internacional que, de um lado, reduz a confiança dos investidores em novos investimentos no exterior e, de outro, estimula a internalização do máximo de renda gerada por aplicações anteriores para cobrir parte das enormes perdas que suas empresas estão sofrendo, especialmente as instituições financeiras. Alguns números falam por si, como os encontrados pelo economista, consultor e doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luiz Simoens da Silva. O total dos investimentos diretos e em carteira, em termos líquidos - menos a renda desses investimentos devolvida ao exterior - caiu 88% de janeiro a julho deste ano em relação ao mesmo período de 2007, saindo de US$ 45,031 bilhões para US$ 5,448 bilhões (veja o quadro nesta página). Enquanto no ano passado, nos sete primeiros meses, a entrada de investimentos diretos e em carteira somou US$ 59,767 bilhões, esses ingressos alcançaram US$ 28,858 bilhões até julho deste ano, uma queda de 52%. Ao mesmo tempo, houve um movimento contrário na devolução de renda aos investimentos no setor produtivo e em portfolio. As remessas saíram de US$ 14,736 bilhões para 23,410 bilhões nos sete primeiros meses de 2008 em relação a janeiro-julho de 2007, um incremento de 59%, como indica o quadro nesta página. "A crise está afetando o Brasil dessa forma: as empresas aqui sediadas, inclusive os bancos, estão sendo chamados a socorrer suas matrizes e isso resulta em aumento das remessas ao exterior", diz Simoens. O detalhamento do fluxo de capitais estrangeiros ilustra essa situação: na mesma comparação, o envio ao exterior da renda dos investimentos diretos deu um salto de 84% (US$ 8,992 bilhões para US$ 16,585 bilhões), bem superior ao crescimento nas remessas dos aplicadores em carteira, de 19% (US$ 5,744 bilhões para US$ 6,825 bilhões). Já a entrada de investimento direto estrangeiro líquido caiu 61%, saindo de US$ 28,070 bilhões para US$ 10,951 bilhões, o mesmo acontecendo com o investimento em carteira, que era de US$ 31,697 bilhões e foi para US$ 17,907 bilhões, no mesmo período analisado. Piora geral A balança de serviços e rendas já está debilitada e a balança comercial tende a piorar, resultando num déficit em transações correntes de mais de 2,41% do Produto Interno Bruto (PIB), ou US$ 19,512 bilhões, apenas nos sete primeiros meses deste ano, contra um saldo positivo de 0,23% do PIB (US$ 1,695 bilhão) registrado em igual período de 2007. Portanto, uma deterioração total equivalente a 2,64% do PIB (US$ 21,207 bilhões). Por isso, a perda de qualidade no balanço de pagamentos deve, no mínimo, inspirar cautela, segundo economistas ouvidos pela Gazeta Mercantil. Isso, a despeito de a situação do Brasil, hoje, ser bem mais favorável àquela do passado, quando a vulnerabilidade externa tinha uma dimensão bem maior - que já chegou a ser de 4% do PIB. Embora contabilize um volume recorde de US$ 207 bilhões em reservas externas, conte com expressivo ingresso de investimentos estrangeiros, além de ter sido promovido a grau de investimento por duas das três principais agências de classificação de risco internacionais, o País ainda sofre as conseqüências de alguns pontos fracos estruturais. "Saímos muito rapidamente de um quadro positivo para negativo em praticamente todos os segmentos do balanço de pagamentos. Essa trajetória é preocupante porque torna o Brasil mais dependente dos recursos externos", afirma Antonio Corrêa de Lacerda, professor-doutor da PUC-SP e economista- chefe da Siemens do Brasil. Ele lembra que "nossa história é pródiga em exemplos de que todas as vezes que o País ficou vulnerável nas contas externas, teve de interromper o crescimento". Entretanto, o relativo conforto vivido atualmente - além das reservas cambiais elevadas, a dívida pública externa equacionada, um crescimento do PIB de 6,1% no segundo trimestre deste ano sobre o mesmo período de 2008 -, não deveria servir de álibi para expandir o déficit externo. "Fragilidade na área externa nos torna muito suscetíveis às mudanças de humor no mercado internacional", ressalta Lacerda. Os avanços institucionais e nos indicadores econômicos do País, na opinião do economista-chefe da Siemens, são amortecedores do desequilíbrio na área externa. "Mas não dá para ignorar que, como em 1998, nós estamos diante de uma crise internacional grave e cujas proporções ninguém sabe avaliar com precisão. Dez anos atrás, a crise estava na periferia - na Ásia, na Rússia -, mas hoje ela acontece em países de muito maior relevância no mundo, como é o caso dos Estados Unidos e suas repercussões na Europa. Diante dessa incerteza, o Brasil não deveria ficar exposto no front externo", argumenta Lacerda. Balança comercial Se o fortalecimento do dólar ocorrido nas últimas semanas ajuda as exportações, em contrapartida a balança comercial deverá ser afetada negativamente pelos preços das commodities no mercado internacional, contaminado pela crise financeira internacional e pela recessão no consumo global. Sem contar que as importações - em parte destinadas à renovação do parque produtivo - também devem continuar aquecidas. As importações de bens de capital - um bom indicador para a melhora da taxa de investimento - foram da ordem de 21% do total das compras feitas no exterior no primeiro semestre de 2008 e aumentaram 47% em relação ao mesmo período do ano passado. Simoens, da Unicamp, enumera outras razões para as autoridades do governo brasileiro mudarem de atitude frente aos sinais de deterioração das contas externas. "O mundo está em crise e sumiram as facilidades do passado para captar recursos", diz. Além do mais, num mercado financeiro internacional desregulamentado, que não conta com um emprestador de última instância, é fundamental manter baixa a vulnerabilidade externa, o que se consegue com saldos positivos, ou próximos de zero, na conta corrente e com reservas internacionais geradas basicamente com saldos comerciais, acrescenta. Neste ano, está ocorrendo o oposto: cai fortemente o superávit comercial, com tendências à piora, e as reservas internacionais, ainda que elevadas, não cobrem o passivo externo do País. "Numa crise sistêmica como a que vivemos, movimentos de fuga de capitais podem se dar muito rapidamente, como já ocorreram inúmeras vezes no passado", afirma Simoens. Para Lacerda, outro problema é que, com exceção de "duas dezenas de empresas", são restritas as possibilidades de o País dar um salto qualitativa e não apenas quantitativo nas exportações. "Se esse processo já estivesse consolidado, poderíamos crescer sem medo e estaríamos menos sujeitos às oscilações do mercado internacional", completa. Desequilíbrios Para Simoens, um País com o passado de desequilíbrios financeiros como o Brasil não pode se dar ao luxo de deixar totalmente por conta do mercado o ajuste na taxa de câmbio fixo. "O fato é que a conta comercial é afetada negativamente pela valorização forte do real", enfatiza, criticando a visão de "liberalismo exacerbado" defendido pela direção do Banco Central. A experiência brasileira já demonstrou que em se tratando de câmbio é melhor prevenir do que remediar."O câmbio flutuante em algum momento promoveria uma correção no seu preço. No entanto, o ajuste poderá ser tardio e traumático. É melhor se antecipar e corrigir a distorção cambial enquanto as condições são favoráveis, o que somente será bem sucedido se coadunado com ajustes nas áreas fiscal e monetária", ressalta Lacerda. (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 9)(Liliana Lavoratti)