Título: Com todo o respeito
Autor: Martins, Túlio
Fonte: Correio Braziliense, 03/05/2011, Opinião, p. 11

Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) ¿Com todo o respeito, doutor, mas nunca entrei em um foro.¿ A frase foi pronunciada com um misto de orgulho pelo passado e resignação com inesperadas dificuldades no presente. Quem a disse foi um agricultor residente em distrito afastado de uma pequena cidade do interior em que fui juiz nos anos 1990. Não ingressar em juízo como autor ¿ e muito menos como réu ¿ era a regra geral da vida de quase toda a população até 10 ou 15 anos atrás. Nunca criar dificuldades para si e ficar longe dos problemas alheios eram as características de um convívio social marcado por tensões aceitáveis e conflitos restritos a determinados locais ou grupos de indivíduos.

Hoje o brasileiro é um usuário habitual da Justiça. Nos transformamos em uma indesejável sociedade de adversários em que todos litigam contra todos, o tempo todo. Contudo, essa mudança não se deu por acaso ou pela força de razões menores. Buscar a Justiça para resolver a maioria das divergências e cumprir determinadas obrigações apenas mediante uma condenação judicial são comportamentos que têm motivações que podem ser identificadas. O apreço pela vida sem atribulações e a capacidade de evitar litígios ou solucioná-los sem a intervenção do Estado não são valores que tenham se perdido com o tempo. Ao contrário, são mais desejáveis do que nunca, mas foram amortecidos por um ânimo geral de litígio que parece ter cada vez mais força.

Num retrospecto das últimas décadas é possível compreender ao menos uma parte desse fenômeno social. O processo de democratização do regime político e o estabelecimento de uma vida econômica pautada pela lei e com garantia de direitos mínimos a todos teve alguns marcos definitivos. Assim foram a eleição de Tancredo Neves, o voto direto para a Presidência da República e, principalmente, a Constituição de 1988. A maior informação de nosso povo ¿ apesar de tudo o que já foi feito contra uma boa educação básica ¿, além da solução de problemas crônicos como a inflação, fizeram com que, de súbito, o brasileiro se sentisse mais integrado no tecido social, mas, paradoxalmente, desatendido em suas demandas básicas.

O que se descortinou a partir desse momento foi uma realidade que de tão óbvia não era percebida: os governos (União, estados e municípios) como regra não cumpriam as próprias leis e também não pagavam as contas. Essa constatação implicou duas consequências básicas na vida dos brasileiros: a primeira foi o ingresso massivo de ações contra o poder público a fim de garantir a efetividade da legislação (em especial a de natureza econômica). A segunda foi o repasse dessa descrença para as demais instâncias da vida de relação. Esse último aspecto foi o mais negativo dos efeitos colaterais, pois ao invés de resolver o problema com o vizinho, fazer um acerto amigável em um pequeno acidente de trânsito ou buscar uma solução justa para uma relação de consumo, simplesmente transferimos tudo para o Judiciário.

Nossa alma foi minada pelo péssimo exemplo dos legisladores e governantes perdidos entre pompa e circunstância, palavras vazias de conteúdo, projetos mirabolantes e promessas que nunca foram cumpridas. Uma das funções concretas (e também de grande simbolismo) do Estado é a de ser o primeiro a cumprir a lei; o contrário leva ao estabelecimento de um cinismo social que desestimula o cidadão e faz de cada qual de nós um individualista descrente do diálogo e de quaisquer soluções informais para as questões da vida. Eu quero que o governo governe, o que para mim significa antes de tudo respeitar as leis, o direito de todos, os contratos, agir dentro de critérios de honestidade e boa-fé e buscar o bem comum. Se o poder público se conduzir assim, os particulares, ao natural, saberão resolver seus litígios, recorrendo ao Judiciário apenas em casos realmente importantes. É o que penso, com todo o respeito, arriscando ser ingênuo, mas não me deixando levar pela desesperança.