Título: Entre o bem e o mal, um fato histórico
Autor: Fontoura, Jorge
Fonte: Correio Braziliense, 05/05/2011, Opinião, p. 27

Doutor em direito internacional, professor e advogado Poucos eventos históricos tiveram impacto tão intenso e imediato na vida internacional e na percepção do comum das pessoas como o colapso causado pelo ataque às Torres Gêmeas. Onde você estava em 11 de setembro de 2001?

Agora, com o anúncio do presidente Barack Obama, em pleno domingo de início de primavera nos Estados Unidos, de que Bin Laden está morto, reaviva-se o espectro do perigo terrorista, que mata de forma insidiosa e imprevisível. A par de razões de natureza ideológica, se favoráveis ou contrárias aos Estados Unidos, em qualquer circunstância é difícil que se justifiquem ações violentas e indiscriminadas, em um mundo que se propõe cada vez mais à negociação e ao diálogo.

Em que pesem os recorrentes adeptos das vertentes conspiratórias, ainda céticos sobre a ida do homem à lua, ou aos recorrentes e incontáveis episódios de antiamericano hormonal, a semana começou com justificável júbilo. Não apenas nos governos ocidentais, a iniciar pelo pronunciamento do primeiro-ministro conservador britânico David Cameron, ainda sob os eflúvios do casamento do príncipe. Em 48 horas as redes mundiais passaram dos devaneios do mundo irreal, apesar da monarquia, para a nudez cruel da verdade, da violência globalizada, que alega matar por alguma culpa imprecisa dos que haverão de morrer.

Em contexto delicado para as relações com os países islâmicos, por mais que a ação militar tenha sido concertado com países muçulmanos e com o serviço de inteligência de Islamabad, a morte de Bin Laden conflagra o que já era particularmente explosivo. A crise das ditaduras islâmicas e de suas espúrias relações com o Ocidente, hoje colocada em cheque pelo grito das ruas de populações irridentas, do norte da África ao Oriente Médio, é em certa medida a repetição do que foi o iter político do fundador da Al-Qaeda. Primeiro, a colaboração ostensiva por todos os meios, lícitos ou não, com a Casa Branca. Depois, a execração e o repúdio, até as ações de recíproca violência furibunda, coroadas por ações terroristas espetaculares.

Em todo esse contexto de acirramento de posições, que chegam a colocar em cheque a unidade da Europa, como vimos no recente entrevero diplomático ítalo-francês, sem que se tenha ademais definido o destino da Líbia e da Síria, o choque de civilizações e a reconstrução da ordem mundial de que falava Samuel Huntington, em seu profético artigo na revista Foreign Affairs, em 1993, parece a cada dia mais atual e imponderável.

Embora os fatos históricos não possam ser reconhecidos de imediato, há certos eventos que dispensam a valoração à posteriori, como ensinava Jaime Cardoso, em suas aulas de teoria da história, na Universidade Federal do Paraná, recém-chegado de seus trabalhos em Sorbonne com Ferdinand Braudel. Não parece exagero afirmar que o Primeiro de Maio, já uma data mundial, terá doravante mais um verbete nas enciclopédias, a aludir o ocaso da primeira grande organização terrorista da era globalizada, sufocada com o desaparecimento da liderança de seu mítico fundador.

No plano interno, após o anúncio da Casa Branca, feito em pessoa pelo presidente, também candidato declarado às próximas eleições, resta mensurar o efeito da notícia na política interna norte-americana. Uma façanha de feição e de musculatura republicanas, mas que, ao contrário da policy dos falcões, foi realizada com cérebro e com discrição.

No plano mundial, esperam-se os desdobramentos políticos da façanha militar americana, em que a propaganda e a contrapropaganda deverão agir fragorosamente. Em particular nos governos islâmicos hostis ao Ocidente, bem como nas relações de cooperação que se haviam iniciado entre os palestinos do Hamas e do Al Fatah.

Diante da rigidez do fundamentalismo religioso que ainda alimenta substancial parte da cultura norte-americana, que celebra o acontecimento como retaliação inevitável, pelos órfãos do terrorismo e pela honra da nação, não muito distante do fanatismo suicida dos soldados de Bin Laden, resta sempre a palavra eterna de Mahatma Gandhi: se os povos aplicarem a lei do olho por olho, a única coisa que ocorrerá é que todos acabarão cegos.