Título: Problema sem remédio
Autor: Neri, Márcia
Fonte: Correio Braziliense, 08/05/2011, Saúde, p. 21

Eles são desenvolvidos para aliviar sintomas e curar doenças. Depois que cumprem a sua função, no entanto, os remédios podem se transformar em um transtorno. Os vidros de xarope, as cartelas de comprimidos e as bisnagas de pomadas dificilmente são usadas por completo. E aí começa o dilema: como descartá-los quando já estão vencidos? Por falta de alternativa ou desconhecimento, o brasileiro ¿ que ainda não perdeu o hábito de se automedicar e armazena em casa uma verdadeira farmácia ¿ costuma jogá-los no lixo ou no vaso sanitário. O problema é que as substâncias químicas desses compostos não desaparecem como num passe de mágica e podem ser verdadeiros vilões da saúde de toda a população.

Se o destino é a lixeira, corre-se o risco de os remédios serem usados por outras pessoas, inclusive crianças, que têm acesso ao lixo e tiram dele seu sustento. Além disso, quando chegam aos lixões, os medicamentos podem se dispersar no solo e atingir o lençol freático, causando a contaminação da água de consumo humano. Se jogadas no vaso sanitário, as drogas não são ingeridas por terceiros, mas continuam a contaminar o meio ambiente e colocar em risco a saúde dos animais e das pessoas.

A farmacêutica industrial do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz) Elda Falqueto alerta que o Brasil ainda não conta com um programa de recolhimento de medicamentos. A medida é adotada apenas em alguns municípios do Sul e do Sudeste que iniciaram a coleta desses resíduos por conta própria. ¿A destinação adequada para tais produtos é a incineração industrial. Aterros sanitários próprios para receberem resíduos químicos perigosos são uma segunda opção¿, detalha Elda, que é mestre em saúde pública e autora do livro O que você precisa saber sobre medicamento ¿ manual básico, editado pela Fiocruz.

De acordo com a especialista, com a parceria do poder público, esses serviços deveriam ser fornecidos pelas empresas fabricantes e distribuidoras de medicamentos, o que inclui farmácias e drogarias. Eles seguiriam a chamada logística reversa, com os produtos retornando à indústria famacêutica, que por sua vez deveria estar preparada para o descarte. ¿São serviços onerosos e cabe ao governo incentivá-los de alguma forma. Em países como México e Colômbia, esse tipo de trabalho já é realizado em programas pilotos¿, conta. Para Elda, a venda fracionada, como ocorre nos Estados Unidos, também poderia minimizar o problema.

Risco de intoxicação Enquanto uma solução não é proposta pelas autoridades, a população não sabe o que fazer e acaba acumulando medicamentos em casa. É o caso a servidora pública Andrea Magalhães, 38 anos. ¿Sei que não devemos descartar no lixo ou no vaso sanitário. Deixar em casa é arriscado, pois alguém pode tomar e se intoxicar. No Distrito Federal, não temos alternativas¿, reclama. Coincidência ou não, o número de registros de intoxicação por medicamentos no DF aumentou mais de 750% nos últimos sete anos, passando de 131 ocorrências em 2004 para 1.118 em 2010. Os dados da Secretaria de Saúde.

Preocupada com a possibilidade de ingestão por engano de drogas vencidas, a aposentada Márcia Guimarães Rodrigues, 68 anos, confessa que, de vez em quando, descarta remédios inadequadamente. ¿Tento triturar as cápsulas para ter certeza de que não serão usadas por outras pessoas. Quando sobra xarope ou pomadas, o destino é o vaso sanitário mesmo¿, lamenta.

Márcia conta que, em sua casa, moram três integrantes da ¿boa idade¿ que consomem medicamentos para hipertensão, osteoporose, artrite, diabetes, colesterol alto, problemas na tireoide e eventuais resfriados e inflamações. ¿Precisamos apenas ter uma opção. Lembro de que já tivemos esse mesmo impasse em relação a pilhas e baterias. Será que se instalássemos trituradores nas pias não resolveria esse problema?¿, indaga.

A farmacêutica Elda Falqueto afirma que não. Ela lembra que, uma vez na rede de esgotos, as drogas vão parar nas estações de tratamento. As diversas etapas do processo de descontaminação da água não conseguem eliminar completamente os resíduos químicos, que acabam prejudicando a fauna, a flora e, consequentemente, a saúde do homem.

Os antibióticos, por exemplo, em contato com os micro-organismos encontrados no esgoto, contribuem para o desenvolvimento de bactérias cada vez mais resistentes à terapêutica disponível. A concentração de hormônios provenientes das pílulas anticoncepcionais também têm grande potencial para afetar adversamente o sistema reprodutivo nos rios. ¿Já existem comprovações científicas de que essas substâncias vêm causando alterações genéticas nos peixes consumidos pela população¿, comenta. Outros estudos sugerem danos como o aumento de casos de alergias a remédios e alteração nos padrões da voz em homens, distúrbios de comportamento e puberdade precoce.

Pesquisas feitas em regiões distintas da Europa comprovaram a presença de resquícios medicamentosos tanto nas águas como no solo. ¿Na Alemanha, foram identificados 36 fármacos diferentes em diversos rios do país. Na Itália, oito substâncias dessa natureza foram encontradas nas estações de tratamento de esgoto ao longo dos rios Pó e Lombo¿, acrescenta a especialista da Fiocruz.

Fim adequado Incineração industrial é um tratamento térmico com temperaturas muito altas (em torno de 1000ºC) realizado em incinerador com altura e filtros adequados. As instalações devem passar por um processo chamado licenciamento ambiental, feito pelos órgãos ambientais competentes.