Título: Dispensando os malabares
Autor: Fernandes, Wanderley M. D.
Fonte: Correio Braziliense, 09/05/2011, Opinião, p. 11

Coordenador da unidade de terapia intensiva do Hospital de Ensino Alcides Carneiro, da Liga de Terapia Intensiva e da Residência em Medicina Intensiva da Faculdade de Medicina de Petrópolis Ao se formar, o médico faz o juramento de Hipócrates, texto supostamente atribuído àquele que é considerado o pai da medicina. Impossível, depois de tantos anos de estudo e dedicação, não se emocionar no momento em que proferimos esse que é uma metáfora da prática médica. ¿Arte de curar¿, assim diz o juramento sobre o exercício da medicina. O compromisso de ser artista, levar a transcendência, tocar no íntimo, explorar o humano. Esse compromisso assumido pelo médico, de ser ¿artista da cura¿, no momento da imposição de grau, entretanto, tem sido substituído por outra prática. O malabarismo é o que tem marcado certas especialidades médicas, como é o caso da medicina intensiva.

Segundo informações do Ministério da Saúde, as regiões Norte e Nordeste do país (excetuando Amazonas e Rio Grande do Norte), apresentam deficit no número de Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Para além disso, 53% das UTIs brasileiras, segundo dados da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), não possuem médico intensivista titulado, nem mesmo o coordenador médico do serviço, critério básico para o funcionamento de UTIs , conforme rege a Resolução da Diretoria Colegiada nº 7 (RDC 7) de fevereiro de 2010. Atualmente, o cenário nacional é o da atuação de profissionais sem a formação adequada nas UTIs. Médicos de outras especialidades, ou, na maioria das vezes, recém-formados sem nenhuma especialização, preenchem a lacuna deixada pela falta de profissionais especialistas em todo o país.

A atual preocupação legítima em aumentar o número de UTIs, manifestada pela presidente Dilma Rousseff em um de seus primeiros discursos, esbarra, portanto, na falta de profissionais, que não conseguem atender nem às já existentes. Não importa ter os mais modernos equipamentos quando não existe quem os opere. Não importa ter o melhor cenário, ou o melhor texto, quando não há artistas para interpretá-los. Inclusive, o número já limitado de UTIs poderia ter o funcionamento otimizado com a atuação de profissionais com a formação adequada. A demanda por novas unidades, portanto, só poderá ser atendida se, concomitantemente, houver o fomento à formação de profissionais especialistas.

O Ministério da Educação não atribui obrigatoriedade de uma disciplina de medicina intensiva nas grades curriculares do curso, tampouco indica recomendações claras para a formação do profissional intensivista na graduação. Preocupa muito, ainda no cenário da graduação, uma clara aversão na procura por especialização em áreas de atendimento hospitalar. Os graduandos nitidamente têm dado preferência a especialidades médicas menos desgastantes, deixando a maior parte das escolas de pós-graduação em medicina intensiva com vagas ociosas, ainda que em centros de excelência, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo.

Um movimento promissor é o surgimento de Ligas Acadêmicas, entidades estudantis que proporcionam maior aprofundamento e contato com áreas específicas da medicina. No caso da medicina intensiva, as ligas têm atuado efetivamente no ensino e na prática no país. Só no estado do Rio de Janeiro existem sete ligas acadêmicas de medicina intensiva. As ligas contam, ainda, com o apoio do Comitê das Ligas Acadêmicas de Medicina Intensiva (Ligami-Amib), que atua na sedimentação do trabalho com a graduação. Não apenas, diretamente, nas ligas, mas também na defesa da inclusão da disciplina de medicina intensiva na grade curricular dos cursos.

Enquanto o Estado, a sociedade e a comunidade acadêmica não perceberem a importância do profissional de terapia intensiva no sistema de saúde, o malabarismo continuará instaurado na prática médica. Assim, trabalhar pela formação de médicos especialistas é uma ação crucial para atender à demanda das UTIs. Fazendo valer o juramento de Hipócrates, sim, seremos artistas. Mas entre os médicos não cabem os malabares.