Título: Medicina proativa: a reforma da reforma
Autor: Fernandes, Wanderley M. D.
Fonte: Correio Braziliense, 09/05/2011, Opinião, p. 11

Cirurgião, docente de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde e membro do Grupo de Estudos da Saúde do Partido Verde (www.wanderleymd.com.br) De tempos em tempos nos chegam notícias de infelizes e trágicas histórias humanas provocadas por desvios comportamentais doentios que denunciam, entre outras ineficiências, um modelo hegemônico de assistência médica hospitalocêntrico pós-ativo, baseado na espera do fato ocorrido ou prestes a piorar.

Comportamentos desviantes ou patológicos, passíveis de prevenção, tratamento e controle por parte das autoridades sanitárias, atingem milhões de brasileiros. Pessoas que sofrem e estão pelas ruas do imenso Brasil pós-reforma psiquiátrica, que os desaloja de tetos seguros e terapêuticos, inclusive indivíduos borderlines incapazes de se mostrarem aos diagnósticos antecipados até que o horrendo aconteça. Para comprovar a assertiva, basta uma leitura das volumosas evidências que nomeiam todos os dias os acidentes no trânsito, as diversas modalidades cotidianas de violências contra todas as formas de vida recém-nascida, infantil e adulta, muito mais os cruéis assassinatos perpetrados por tarados e perversos de toda ordem, a utilização abusiva de bebidas alcoólicas, a epidemia avassaladora do uso do crack e outras drogas entre adolescentes, fatos frequentes do noticiário nas cidades brasileiras. Inicialmente não deveriam ser objeto de boletins de ocorrências, nem candidatos ao acirramento de repressões, vigilâncias ostensivas e controle policial.

A medicina proativa, positiva, afirmativa, envolvida nas estratégias do Programa Saúde da Família (PSF), há 16 anos espera ocupar o merecido espaço no competitivo mercado da saúde pública, ávido por construções, tecnologias e regulações. O programa implantado nas unidades básicas de saúde propicia, nas visitas domiciliares de rotina dos agentes comunitários de saúde (ACS), que são gente da própria comunidade, uma reorganização da prática assistencial assentada em novas bases e critérios, diferentemente do modelo centrado na doença e no hospital.

É um processo de construção social da saúde, que reduz substancialmente a demanda espontânea para unidades hospitalares superlotadas, num espaço estratégico de substituição da prática impessoal das produções tecnológicas de saúde por trabalho vivo, interpessoal, construindo, nas relações intrafamiliares, possibilidades de inversão da hegemônica acepção da atenção médico-centrada para a humanizada, versão cidadão-centrado. A referência e a contrarreferência utilizadas como normas invioláveis de acesso aos níveis mais especializados da assistência médica.

Um Wellington assassinou 12 adolescentes em uma escola municipal do Rio de Janeiro. Milhões de brasileiros perplexos. Durante meses desfilou sua loucura num ritual macabro e repetitivo sem que ninguém o observasse, dele se aproximasse, o diagnosticasse e tratasse, antes de que tudo viesse a ocorrer. Tempo houve, a maquinação doentia foi demorada e extensiva. Agentes comunitários de saúde e profissionais do Programa Saúde da Família, nas suas visitas de rotina, talvez o tivessem identificado de comportamento desviante, dele se acercado e possivelmente abortasse a perda de tantas vidas jovens e inocentes, que protagonizou discursos oportunos e sentimentalizados de toda a cúpula de autoridades do estado e do município, enquanto em Realengo há uma equipe de ACS para aproximadamente 35 mil famílias e cinco de PSFs para cerca de 700 mil pessoas. Na cidade do Rio de Janeiro, o Programa Saúde da Família atinge menos de 6% da população. Abundam UPAs e hospitais federais, estaduais e municipais, numa organização em que os bombeiros militares têm predomínio na assistência às urgências e emergências médicas pós-ativas.

O filósofo grego Diógenes de Sínope (404-323 a.C) perambulava, empunhando uma lanterna acesa em pleno sol de meio-dia, numa campanha incansável para desbancar valores sociais da época, que acreditava infringir a cidadania. Após 2.334 anos, como Díogenes, procura-se quem defenda um movimento de gestão no sentido das mudanças no sistema de saúde pública, que abarquem desde a necessidade de substituição do modelo assistencial hospitalocêntrico até a melhor alocação, racionalização e utilização dos escassos recursos ora vigentes, muito mais nas estratégias do Programa Saúde da Família. Será a reforma da reforma.

Na Norma Operacional Básica (NOB) do Sistema Único de Saúde de nº 001/ 96 estão as primeiras citações sobre um novo modelo assistencial, destacando o Programa Saúde da Família como opção inadiável: reorganização das assistências, reorientação das demandas e dos mecanismos de gestão, contemplando a oferta organizada em vez da procura espontanea. Importantíssima inversão resolutiva, universal, equânime, integral e inclusiva por busca ativa, até hoje ofuscada pelo ideário neoliberal, fragmentado, focalizador, de alto custo, tecnologicizado, exclusivista e de volumosa medicina pós-ativa. Quem foi atendido pelo Programa Saúde da Família o avaliou ¿muito bom¿ e ¿bom¿: 80,7% entre 2.773 entrevistados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em fevereiro de 2011, com resolutividade superior a 76% dos casos atendidos. Só resta afirmar, com Geraldo Vandré (1968), que ¿quem sabe faz a hora não espera acontecer¿.