Título: Para virar a página
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 18/05/2011, Mundo, p. 14

Por alguns minutos, o passado sangrento foi reconhecido e seus fantasmas começaram a ser exorcizados. Ao som de God save the queen, a rainha Elizabeth II depositou uma coroa de flores no Jardim da Lembrança, em Dublin, por volta das 15h27 de ontem (11h27 em Brasília). O local homenageia os cerca de mil irlandeses mortos ao buscar a separação de Londres. O jornalista irlandês Richard Chambers, de 21 anos, assistiu à cerimônia pela TV e admitiu ao Correio ter ficado ¿orgulhoso e aterrorizado¿ ao mesmo tempo com a cena. ¿Muitos de nós jamais imaginávamos que esse dia chegaria¿, explicou. ¿Para mim, foi marcante o fato de a rainha render respeito àqueles que lutaram contra o domínio da monarquia britânica. Um momento no qual o passado foi tratado como algo superado¿, acrescentou. Chambers acredita que a presença de Elizabeth II mostra que o país amadurece enquanto nação e se coloca na condição de vizinha e amiga do Reino Unido.

A primeira visita de um monarca britânico à Irlanda desde a independência, em 1922, ocorreu em meio a um esquema de segurança sem precedentes. A despeito dos 30 milhões de euros (R$ 69 milhões) investidos em vigilância e da mobilização de quase 10 mil policiais irlandeses e militares das Forças de Defesa, Dublin amanheceu ontem com uma notícia alarmante. Durante inspeção de rotina em Maynooth, na área metropolitana, uma bomba foi encontrada no compartimento de bagagem de um ônibus, na noite de segunda-feira. Cerca de 30 passageiros foram retirados às pressas. Especialistas em explosivos realizaram uma detonação controlada.

Carl de Souza/AFP ...cerca de 200 ativistas entravam em choque com a polícia, após queimarem a bandeira britânica: segurança sem precedentes conta com 6 mil agentes De acordo com o Daily Telegraph, a bomba artesanal provavelmente leva a assinatura do Exército Republicano Irlandês (IRA). O jornal cita como fonte Patrick Mercer, parlamentar e ex-oficial do Exército que serviu na Irlanda do Norte e na Bósnia. Por e-mail, o historiador Emmet O¿Connor ¿ professor da Universidade do Ulster (em Coleraine, Irlanda do Norte) ¿ duvida que o atentado frustrado seja obra do IRA e suspeita de um pequeno grupo dissidente. ¿As relações entre o Reino Unido e a Irlanda têm sido boas desde o tratado anglo-irlandês firmado em 1985. Essa visita foi incentivada pela presidenta irlandesa (Mary McAleese), que deseja ter seu nome nos livros de história¿, explica. O¿Connor lembra que 10% dos irlandeses são ¿anglofóbicos¿. ¿Outros 10% são anglomaníacos, com uma nostalgia pelo colonialismo e pelo império.¿

Simbolismo Às 12h06, ao desembarcar na base aérea de Baldonnel, na periferia de Dublin, a rainha usava um vestido esmeralda ¿ uma das cores da bandeira irlandesa. Era apenas o primeiro de uma série de gestos repletos de simbolismo. Hoje, Elizabeth II provavelmente viverá o ponto alto da viagem oficial à Irlanda, realizada 11 anos depois da assinatura dos acordos de paz da Sexta-Feira Santa que terminaram com 30 anos de violência entre protestantes unionistas e católicos republicanos no Ulster. A rainha se reunirá com integrantes da Associação Atlética Gaélica no Estádio Croke Park, no centro da capital. Em 1920, em meio à Guerra Irlandesa pela Independência, forças britânicas mataram à queima-roupa 14 pessoas, durante uma partida de futebol. O massacre foi retaliação à morte de 14 oficiais de inteligência do Reino Unido pelas mãos do IRA. À noite, Elizabeth II fará um aguardado discurso, como convidada ao jantar de Estado no Castelo Dublin. A visita se encerra na sexta-feira.

Enquanto o evento no Jardim da Lembrança se desenrolava, integrantes do partido republicano socialista Eirigi soltavam balões pretos e entravam em choque com a polícia. Os manifestantes ficaram furiosos com o fato de paramilitares leais à Coroa britânica terem sido convidados para recepcionar a rainha. Segundo o diário irlandês The Journal, 21 pessoas foram detidas. ¿O Eirigi funciona mais como grupo de protesto do que como partido político. Ainda que organizados, são uma facção extremamente reduzida e restrita a Dublin¿, contou à reportagem o jornalista John Cronin, de 27 anos, morador de Dublin. A executiva de seguros Valerie McDermont classificou as manifestações de ¿patéticas¿. ¿Eles (os membros do Eirigi) deixam o país para baixo e nos fazem olhar para o passado, em vez de vislumbrar o futuro¿, criticou a irlandesa. Uma pesquisa recente indica que a viagem de Elizabeth II tem a aprovação de 81% da população da Irlanda.