Título: Entrevista - David do Nascimento Batista
Autor: Nogueira, Josué
Fonte: Correio Braziliense, 22/05/2011, Política, p. 6

O que lhe instigou a pesquisar a postura do Itamaraty no governo militar? O sociólogo trabalha com duas coisas fundamentais: com regra, aquilo que é linear, que se repete ao longo do tempo, e com exceção. A questão é que a exceção sempre denuncia a regra. A exceção seria o não aparecimento dos diplomatas como integrados à repressão. O Itamaraty é tido como a reserva moral do Estado. Isso me chamava a atenção. Essa coisa incólume seria a exceção. Estado, Congresso, Polícia Federal, Polícia Civil, Exército e Justiça se envolveram, mas o Itamaraty, para todos os efeitos, não. Conseguiu ficar no limbo. Uma coisa interessante é que o Itamaraty não aparecia. A não ser em momentos pontuais, mas que também se diluíam. Porque, entre a repressão efetiva do governo militar e a opinião isolada de um diplomata, essa coisa não era evidenciada.

Esse caráter de reserva moral atribui-se a quê? O Itamaraty se diferencia de todo e qualquer setor ou agência do Estado. Trabalha com uma disciplina de tal ordem que, ao receber uma ordem, a cumpre sem discutir. Não tem nem raiva nem preconceito com nada que se passa e diz respeito a ele. Pelo menos oficialmente. É uma habilidade extrema de passar uma imagem asséptica, quando na verdade integra um aparato que, para se constituir como aparato permanente, tem que trabalhar com segredo. E, evidentemente, a origem sociológica do diplomata é essa. No início, ainda no momento de configuração do Estado, eles trabalhavam como segretários (especialistas em guardar segredo). Aqueles que atuavam permanentemente com o príncipe tinham de ter capacidade de atuar como o que se chama de silêncio oportuno.

Ainda que se ferissem princípios, ideologias, convicções pessoais, interesses político-partidários? Ainda que ferisse a moral convencional.

Ainda que se discordasse de atos institucionais, atos violentos, perseguições, torturas, prisões? Ainda que sentindo repugnância, atuavam com a estrutura. Diplomata não tem vontade própria. Evidentemente, ele pode ter condição de dizer não. Agora, até certo ponto.

Mas haveria espaço para alguém se rebelar? Qual seria o preço de uma crítica ao regime? Ostracismo. Ele seria congelado. A carreira viraria emprego. Os melhores postos, obviamente, estariam fechados para ele.

As ações condenáveis do regime passavam em que nível pelo Itamaraty? O Itamaraty tinha total consciência das ações, do ponto de vista documental e investigativo. Isso também integrava o papel das relações no exterior. O exterior recebeu exilados políticos e, consequentemente, diplomatas.

Eles tinham o papel de vender para outros países uma imagem fabricada do Brasil diante de uma realidade de opressão, tortura e morte? Existia uma figura dentro do Itamaraty que na época ainda era embaixador nos EUA, Gibson Barbosa (depois chegou a chanceler). No exterior, ele se empenhava em entrar em contato com os proprietários do Washington Post para mudar a visão que eles tinham do país. O que chama a atenção é o seguinte: Gibson Barbosa era embaixador do Brasil nos EUA nesse período mais duro da ditadura, em 1968, e havia sido chefe de gabinete de Santiago Dantas, que era o chanceler de João Goulart. Parece estranho, mas de estranho não tem nada. Essa é a versatilidade do diplomata. Não tem preconceito. O patrão dele não é o governo, é uma estrutura acima dele. É o Estado. O governo apenas ocupa determinado espaço do Estado por um tempo. Eles (os diplomatas) têm que ter zelo, cuidado, respeito acima de qualquer regime.

O país perde em algum sentido pelo fato de o corpo diplomático guardar fidelidade máxima ao Estado, ainda que esse Estado cometa erros? A natureza intrínseca do Estado é essa. O Estado é o mais frio de todos os monstros frios.

O senhor aponta na tese que a ¿verdade plástica e opaca do Itamaraty é tragicamente necessária¿. Isso resume bem o papel dos diplomatas? Todo Estado precisa de aparato de segurança. Não há outra forma de agir para o Itamaraty. Se se posicionasse contra, seria limado. Perderia o sentido. Passaria pelo que o Supremo passou: duas depurações. Você limpa uma vez, não está limpo o suficiente, limpa de novo. No capítulo em que falo da relação entre campo, estrutura e agente, isso fica claro. O sujeito perde acesso a determinada estrutura e está consciente disso. Agora, isso cabe a diplomatas, padres, cardeais, jornalistas, juristas.

O senhor compara a atuação do Itamaraty no governo militar a um nó úmido, difícil de desatar. É difícil de ser desamarrado. Quando peguei o tema para estudar, tive extremo cuidado. Essa entrevista, por exemplo, é outro momento delicado porque há perguntas a que você tem que dar a resposta efetiva, mas as palavras são difíceis de serem encontradas. Por isso usei a expressão nó úmido. Um nó úmido, quando você tenta desatar, quase sempre fere o corpo. Nesse caso, não se consegue desatar. É uma condição intrínseca daquele campo.

Essa fidelidade do Itamaraty ao Estado levou diplomatas a reforçarem o boicote a Dom Helder nas indicações que ele teve para o Prêmio Nobel da Paz. Como isso se deu? Enquanto, na direção do Prêmio Nobel, alguém lembrar o esforço da ditadura para não aceitar a indicação de um brasileiro para integrar o rol do prêmio, o Brasil jamais ganhará. Os militares fizeram de tudo, com o Itamaraty, para que não fosse concedido a Dom Helder o Prêmio Nobel. Eles temiam que com isso Dom Helder tivesse aval para recrudescer as críticas contra o regime. O Itamaraty endossou o boicote do começo ao fim. Era o canal fundamental entre o Estado brasileiro e os escandinavos. Fez essa enorme pressão e teve resultado positivo para a ditadura. (JN)