Título: O conto do Seringal
Autor: Luiz, Edson ; Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 29/05/2011, Brasil, p. 12

Enviado Especial

Rio Branco e Brasília ¿ Classificados em relatórios oficiais de ¿desconcertantes e estúpidos¿, os boatos de índios que devoravam homens ou de que trabalhadores seriam vendidos a preço de ouro na floresta precisavam ser eliminados da cabeça do sertanejo. Não bastavam os apelos do presidente Getúlio Vargas dirigidos aos soldados da borracha, que ¿lutariam¿ na Segunda Guerra Mundial tirando seringa das árvores para abastecer as tropas aliadas com a matéria-prima. Foi preciso prometer muito mais. Dirigida à maioria analfabeta, a cartilha de recrutamento do governo apresentava, por meio de desenhos, feitos pelo artista plástico suíço Jean-Pierre Chabloz, uma nova Amazônia. ¿Pedaço do Brasil que não é mais o inferno verde, mas, atualmente, a terra da promissão¿, exagerava o material publicitário, divulgado a partir de 1942.

Além das cartilhas, cartazes foram espalhados em cidades devidamente escolhidas ¿ ganhavam preferência as de maior desemprego no momento ¿ do Piauí, do Maranhão e principalmente do Ceará. Coordenada pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta), órgão criado por Vargas, a propaganda prometia toda a pesca e caça obtidas, 60% da produção da borracha e muitas outras vantagens. Mas ainda esbarrava na desconfiança do ¿caipira¿, como eram chamados os nordestinos pelas autoridades em cartas confidenciais. Relatório de um médico que selecionou 217 homens no período de um mês, em municípios cearenses, revela alguns dos artifícios usados no recrutamento, como um acordo com o empregador local para que dispensasse os funcionários solteiros, mais propensos a se tornarem soldados da borracha, e contratasse os casados.

Aproveitando-se da paralisação do serviço industrial da carnaubeira cearense durante o inverno, no Vale do Jaguaribe, o médico ressalta, em certa altura do relatório, que 15 homens se alistaram ¿com a condição de serem alimentados até o dia do embarque¿. O fato é que, para muitos, devido à realidade precária do sertão, a única saída foi acreditar nas maravilhas que os esperavam na floresta. Até mesmo quem tinha um pouco de condição financeira sonhava com uma vida melhor. ¿Vi a floresta pelo jornal e achei bonita. Além disso, diziam que a borracha dava dinheiro¿, conta João de Deus Alencar, hoje com 88 anos. ¿Me arrependi. Se tivesse ficado lá no Ceará, minha terra natal, minha vida seria outra¿, ressalta.

Considerado uma pessoa que tinha um ¿saberzinho¿, já que seu grau de escolaridade era o equivalente à quinta série atual, João de Deus trocou a companhia dos militares norte-americanos ¿ com quem trabalhava ¿ pela dos arigós, alcunha dada aos sertanejos que chegavam à Amazônia. Filho de um oficial do Exército, ele era recruta quando decidiu pedir baixa para enfrentar a floresta. Nada sabia sobre a seringa até ser treinado no Pará, depois da viagem de navio. ¿Eles colocavam um tronco para que a gente treinasse a extração do leite¿, lembra o soldado da borracha.

Como todos os outros homens recrutados, João recebeu, ao se alistar, um kit de viagem, composto de roupa, alpercata, chapéu, mochila, rede, prato fundo, caneca, garfo e colher. Além de assistência à saúde, deslocamento seguro e confortável, comida saudável, as promessas durante a campanha de mobilização incluíam o valor de Cr$ 6,00 (seis cruzeiros) diários, caso o soldado não prestasse serviços; e Cr$ 10,00 (10 cruzeiros) por dia de trabalho. A família do combatente da borracha também estaria protegida, de acordo com os compromissos assumidos pelo governo em documentos oficiais. Ninguém poderia imaginar que, depois das privações ao longo da viagem, eles seriam enquadrados numa espécie de regime de escravidão.

Empregadores locais, líderes da comunidade e párocos eram os incentivadores não governamentais, mas com grande influência, do alistamento dos nordestinos. Carta de dom Helder Câmara, naquele momento chefe do Departamento de Assistência Religiosa, um dos setores do Semta, deixava claro que havia uma certa resistência dos religiosos da região. Mas explicava, em seguida, que os bispos e arcebispos decidiram dar suporte à mobilização por medo de perderem espaço para os padres e pastores norte-americanos. ¿Vindos de país rico e progressista trariam recursos técnicos e financeiros nada desprezíveis¿, escreveu dom Helder, repetindo o que tinha ouvido dos párocos da região, em relatório de janeiro de 1943.

O artista Contratado pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta), o suíço Jean-Pierre Chabloz era o chefe da Divisão de Desenhos Publicitários da Campanha Nacional da Borracha. Ele criou cartazes e cartilhas para ajudar no recrutamento. Montou também, com seus traços, desenhos do biotipo do nordestino, para ajudar os médicos na seleção. E foi a Belém para ver de perto a extração do látex, em seguida representando-a por meio de desenhos.