Título: A governança sincrética
Autor: Saraiva, José Flávio Sombra
Fonte: Correio Braziliense, 29/05/2011, Opinião, p. 19

Ph. D. pela Universidade de Birmingham, Inglaterra, professor titular de Relações Internacionais da UnB

As grandes escolas acadêmicas das relações internacionais se debruçam sobre as pranchetas da arquitetura internacional há algumas décadas. As primeiras conclusões começam a chegar. Novos estudos, no Norte do planeta, e antes em países como o Brasil e a China, desenham gradualmente os elementos inéditos e constitutivos de uma nova governança global.

A governança nascente não é europeia nem norte-americana. Nem tem seu epicentro nas águas do Atlântico Norte. Não é governada pelas sociedades civis supranacionais. Nem sequer expressa fé inquebrantável nas formas de produção e distribuição econômicas baseadas em princípios liberais. Tem algo de tudo isso, mas não pode ser definida apenas por esses parâmetros.

A clássica escola inglesa das relações internacionais já procurara, no curso da guerra fria, o caminho do meio. Entendia que, para além dos cânones da bipolaridade estratégica soviético-americana, havia vida e diversidade no planeta. Acreditava possível reeditar a sociedade internacional da Europa do século 19 em meados da guerra fria. Seus grande autores, como Martin Wight, Hedley Bull e Adam Watson, não assistiram à emergência de um novo concerto global racional, com diretório liberal razoável e pluralismo ideológico.

O presidente Obama produziu peça diplomática curiosa e animadora no parlamento britânico, recentemente. Enterra politicamente as escolas acadêmicas do realismo político e das teorias que foram ensinadas por décadas nas academias dos Estados Unidos. Encerra o ciclo do ensino da hegemonia americana nos fatos e na formação dos conceitos de relações internacionais. Tais teorias constituíram parte da organização curricular de cursos de relações internacionais no Brasil. Colegas nossos ensinavam, no Brasil, mais realismo que o rei.

Dista o mandatário norte-americano da autoconfiança na pax americana de Bush pai e reconhece os limites dos sonhos de Bush filho. Ainda que em campanha eleitoral e movido por razões internas, reconhece Obama que a projeção global da Otan e das economias ocidentais, sob a liderança dos Estados Unidos, está reduzida pela elevação de grandes Estados continentais, portadores de massa territorial, peso demográfico e escala econômica propulsora voltada para o novo ciclo do crescimento econômico da Terra.

Emerge a governança sincrética do sistema internacional. Ela é multipolar, dirigida por grandes Estados, ao Ocidente e ao Oriente, ancorada em valores múltiplos e conduzida por coalizões graduais e afinidades eletivas. Movem-se por meio de dinâmicas nas quais os interesses nacionais das novas potências não se subordinam automaticamente às regras e normas do antigo G-8 ou do diretório onusiano.

A governança sincrética é um sistema híbrido. O peso das velhas potências e dos órgãos econômicos, como o FMI e o Banco Mundial, é compartilhado com grupos de países tais como aqueles que compõem o Brics. Há também a inserção de novos atores como as empresas multinacionais do Sul em processo ampliado de internacionalização. Vide os casos chinês, brasileiro e indiano.

No campo da segurança internacional, a governança sincrética torna difícil o caminhar rumo aos antigos consensos. Já não se aprovam sanções e intervenções no sistema internacional sem o apoio dos emergentes. Os casos da intervenção no Iraque e a caça ao governante da Líbia contrastam com os conceitos de solução pacífica de controvérsias, esses mais próprios aos Brics e às percepções do Sul das relações internacionais.

A China, que atrai e repele tais emergentes, a depender do aspecto em discussão na agenda da governança sincrética, é modelo de crescimento econômico. O Pacífico é seu eixo dinâmico preferencial. O entorno chinês, antes influenciado pelo modo de produção norte-americano, já se subordina ao modelo de baixos salários e aumento da jornada de trabalho nas fábricas. São outros valores, não exatamente os do welfare-state patrocinados pela história da elevação econômica, social e política da Europa.

Em síntese, há novas escolas e visões que emergem. O Brasil já está preparado, porque insistiu em um pensar próprio, a avançar, nas suas escolas de relações internacionais, o desafio da governança sincrética.