Título: FHC quebra o tabu e especialistas reagem
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 04/06/2011, Brasil, p. 10

Em 74 minutos, com animações, textos e muitas entrevistas, o documentário Quebrando o tabu, que estreou ontem no país e tem como protagonista o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, enfatiza o fracasso mundial no combate às drogas. Das salas holandesas de aplicação segura de heroína às cracolândias brasileiras, o filme apresenta diferentes realidades sobre a política relacionada aos entorpecentes. Soa simplista ao responsabilizar o viés proibitivo de legislações como a do Brasil pelo distanciamento de usuários que poderiam ser tratados, pelo aumento de doenças transmitidas por seringas compartilhadas, pela curiosidade gerada nos adolescentes devido à clandestinidade da droga e pela violência em comunidades pobres. Mas impressiona pelos depoimentos de autoridades no assunto. A fita tem o mérito de levantar a discussão, com especialistas já divergindo sobre as visões apresentadas.

Para Eloisa Dutra Caldas, professora de toxicologia da Universidade de Brasília (UnB), está claro que o caminho da repressão é o mais equivocado. Ao defender a legalização da maconha e a descriminalização de outras drogas, a especialista faz ressalvas.

¿Será que o Brasil, que mal consegue cuidar da gripe de um idoso, terá um programa de atendimento público a dependentes?¿, indaga. A resposta, para Ana Cecília Marques, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), vem das drogas já legalizadas. ¿Vamos falar do álcool e do tabaco, então. Os dependentes em etanol não conseguem tratamento e, quando conseguem, eles são ruins. Por outro lado, o SUS (Serviço Único de Saúde) oferece um tratamento para deixar de fumar que quase não é procurado¿, afirma Ana Cecília, dizendo-se contrária ao abrandamento da legislação.

A psiquiatra, que integra o conselho da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), discorda do argumento de que a lei atual trata o usuário no Brasil como criminoso, visão reforçada em Quebrando o Tabu, inclusive com cenas feitas dentro de penitenciárias. ¿Em 30 anos trabalhando com dependentes, nunca vi ninguém sendo preso porque portava maconha, nem mesmo quando havia previsão de cadeia, hoje extinta¿, afirma Ana Cecília, rechaçando também a ideia de que a maconha é uma droga leve.

¿Isso é pregado como verdade absoluta, mas ninguém sabe.¿ Eloisa, entretanto, destaca que toxicologicamente a maconha é uma substância mais branda com relação aos danos provocados, menores inclusive que o álcool. ¿Embora existam perdas cognitivas e de memória, caso o uso seja continuado, a dependência química ainda não foi demonstrada¿, explica.

Para além da seara da Saúde, as discordâncias se espalham em outros aspectos, como a ideia defendida pelo filme de que a violência e a corrupção poderiam diminuir caso as drogas fossem liberadas. ¿Sou favorável à linha da descriminalização, mas precisamos ter cuidado. Somos um país problemático, de baixo controle das instâncias públicas, de desvios, de falta de estrutura. Não adianta achar que tudo se resolverá¿, afirma José Vicente da Silva, coronel reformado da Polícia Militar em São Paulo e ex-chefe da Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Embora defenda claramente o abrandamento na legislação, o documentário aponta que nem a bem-sucedida experiência holandesa em relação à maconha escapa de contradições. Apesar de a erva ser vendida e consumida em coffeshops, a produção é proibida no país.

Participam do filme, que captou R$ 2,7 milhões com incentivos fiscais pelo instrumento das isenções no imposto de renda, gente como Gro Brundtland, ex-Primeira Ministra da Noruega e Diretora Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS); os ex-presidentes norte-americanos Jimmy Carter e Bill Clinton; e Ruth Dreiffus, ex-presidente da Suíça. FHC, que participou de quase todas as tomadas, defende que o governo, em casos a serem estudados, forneça a droga para o usuário. Se experimentou, ele garante que não.