Título: Por uma nova visão sobre o uso de drogas
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 03/06/2011, Brasil, p. 10

DEPENDÊNCIA QUÍMICA

Reunidos em Nova York, nomes de expressão internacional defendem que usuários deixem de ser tratados como criminosos. Só assim, segundo eles, a batalha contra os entorpecentes começará a ser vencida pelos governos

Enquanto marchas em favor da legalização da maconha se espalham pelo Brasil, 19 personalidades de expressão internacional declararam ontem, em Nova York, que a guerra às drogas no mundo fracassou. Em um relatório de 24 páginas, a Comissão Global de Políticas sobre Drogas destaca experiências internacionais de flexibilização das punições contra o usuário ao mesmo tempo em que aponta os prejuízos de um combate aos entorpecentes pelo viés da criminalização. Entre os problemas apontados estão a violência relacionada ao tráfico e a dificuldade de implantar ações na área da saúde, como as voltadas para a redução da Aids e das mortes por overdose.

Para embasar tal posicionamento, o grupo apresentou índices alarmantes de infecção pelo HIV entre pessoas que usam drogas injetáveis. Na lista de países onde há política de redução de danos dirigida a usuários de drogas, como a Suíça e a Austrália, as taxas ficam entre 2,5% e 4%. Uma relação de nações onde tais ações começaram tardiamente ou quando já havia um número grande de infectados ¿ incluindo os Estados Unidos, Portugal e a França ¿ tem índices maiores, que variam de 11% a 16%. Na pior situação estão países como Tailândia e Rússia, onde o índice supera 40%. Os dados foram levantados por um grupo da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2008 e não têm informações sobre o Brasil.

Especialistas destacam que a realidade brasileira difere de muitos países europeus no que diz respeito ao tipo de droga consumida. ¿A heroína, felizmente, é algo pouco utilizado aqui. Nosso foco deve ser a maconha, a cocaína, o crack, e, cada vez mais, as drogas sintéticas. É preciso uma atenção especial a esse tipo de substância em rápida expansão¿, afirma o ex-titular da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) Walter Maierovitch.

O jurista enfatiza, entretanto, que é preciso aproveitar as experiências internacionais como uma fonte de inspiração para modificar a atual estrutura de combate às drogas. Ele ressalta que a Holanda, hoje apontada como um modelo pela Comissão Global de Políticas de Drogas, regulamentou a maconha na década de 1970. ¿É muito atraso, o país (o Brasil) precisa agir rápido¿, defende.

Os problemas brasileiros começam na falta de dados atualizados sobre o consumo de drogas. A última pesquisa em escala nacional aponta que a maconha como a substância ilícita mais consumida, com 1,9% da população afirmando ter consumido o entorpecente no último mês. Quando perguntado sobre o uso na vida pelo menos uma vez, o índice sobe para 8,8%. Depois aparecem os tranquilizantes, consumidos por 1,3% nos 30 dias anteriores à sondagem feita pelo governo. Cocaína e solventes ficam em terceiro lugar, utilizados por 0,4% da população no mês no mês em que antecedeu a pesquisa, de acordo com dados da Senad.

ONU Além de levantar um debate com chefes de Estado, um dos principais objetivos da entidade independente que apresentou o relatório sobre drogas ontem é firmar uma boa interlocução com a Organização das Nações Unidas (ONU), que, por meio de tratados e convenções, orienta em linhas gerais as ações da maior parte do planeta no que diz respeito aos combate aos entorpecentes.

No Brasil, extraoficialmente, representantes da ONU consideraram o documento um marco, enfatizando que o país precisa, devido a sua importância econômica e aos problemas decorrentes do tráfico, repensar as estratégias, não necessariamente pelo caminho da descriminalização. O tema ainda é controverso dentro do organismo internacional.

Os integrantes do grupo de notáveis ¿ que inclui o atual primeiro-ministro grego, George Papandreou; o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ¿ tentam promover o debate sobre a guerra contra as drogas mais pela repercussão de suas opiniões no mundo do que por ações concreta com governos, apesar de trocarem informações e compilarem dados, como o documento apresentado ontem.

Regras distintas No debate sobre mudanças na estratégia de combate às drogas, é comum haver confusão a respeito de termos utilizados. A descriminalização significa que o consumo de entorpecentes deixa de ser crime, mas continua sendo ilegal. Só que, em vez de responder a um processo penal ou até ser preso, o consumidor sofre sanções administrativas, como multas. Já a legalização das drogas significa considerá-la permitida, inclusive no que diz respeito à produção, à venda e à regulamentação de uma indústria produtora. No Brasil, a lei antidrogas retirou do rol de punições ao usuário a pena de prisão, mas mantém o ato como crime.