Título: E quem socorre os médicos?
Autor: Fernandes, Wanderley M. D.
Fonte: Correio Braziliense, 13/06/2011, Opinião, p. 11

Cirurgião, docente de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), membro do Grupo de Estudos da Saúde do Partido Verde (www.wanderleymd.com.br)

Legado trágico do aristocrático Píndaro (518-438 a.C.), o mito do filho favorito do deus grego Apolo ainda hoje sobrevive atualizado na transvaloração de tempo do caos vigente, passados tantos séculos.

Arrebatado por seu pai arrependido do mando, numa repentina cesariana no ventre da adúltera mãe Coronis enquanto o corpo ardia na pira fúnebre, assassinada pela cunhada Artemis a pedido do irmão traído, Asclépio, o deus dos médicos, foi criado pelo centauro Quíron, que o educou nas artes da caça e da cura. Encontrou nas serpentes as ervas medicinais da ressuscitação e a fama o acompanhou até ser também assassinado pelo ameaçado Zeus, com um raio, pela prática midiática dos seus atos. Parece que a tragédia contingente ainda não redimiu seus súditos da Terra do atávico destino.

Das raízes da individuação junguiana (1875-1961) às metáforas mitológicas do Ecce homo de Nietzsche (1844-1900), do "como nos tornamos aquilo que somos" à exortação do Oráculo de Delfos " conhece-te a ti mesmo", pode-se pensar como a representação daquelas civilizações longínquas revelam conexões arquetípicas com os atuais acontecimentos, individuais e coletivos, que atingem os médicos brasileiros.

Na lida sublime da vida, presença ininterrupta do nascimento aos últimos momentos da trajetória humana na Terra, de formação exaustiva, em muitos anos de estudos intensos e contínuos, o médico enfrenta a reificação da sua atividade, envolvido a todo momento na emergência de variáveis conjunturais que fragmentam o sonho acadêmico da responsabilização social sobre corpos, almas e mentes.

Mesmo que sejam 16 mil formados por ano, ainda assim não serão suficientes quando se tratar da carreira de Estado e da inadiável decisão política de incentivo para a distribuição territorial equânime de médicos por todos os 5.565 municípios do país.

Urge nas cidades o retorno à ocupação dos seus espaços perdidos e devidos por direiro conquistado em anos de formação. A contínua substituição de sua arte ¿ exemplo: os 300 mil atendimentos de urgências/ano do Corpo de Bombeiros só no estado de São Paulo ¿ como se todos os pacientes fossem encontrados sob as ferragens, mesmo após o Parecer de n° 47 de 1995 e a Resolução nº 1.529 de 1998, do Conselho Federal de Medicina, definirem claramente o atendimento de emergência pré-hospitalar como prerrogativa única de ato médico no Estado brasileiro, do Oiapoque ao Chuí, médicos amargam o subemprego privado, o salário vil ou as péssimas condições de trabalho nos serviços públicos de saúde. Necessitam de dois a três empregos, em algumas localidades de até três a quatro empregadores para sobreviveram com dignidade. Enfermeiras já atendem pré-natal, puericultura, grupos de diabéticos, de hipertensos e outros. Há hospitais regionais em Brasília em que leigos, contratados em cargos comissionados, quando muito alfabetizados, participam das chefias das equipes como supervisores de emergência, atuando em postos de decisão. Uma engenhosa invenção capitalista de atividade pseudossemelhante por menor remuneração. Os médicos diretores, ainda sem a força de eleitos diretos por seus pares, toleram e artificializam o poder e socializam as consequências.

Esculpidos pela força midiática do poder público estatal dominante, vivem de culpabilidades, opressão da carência e da escassez continuadas, na maioria do tempo testemunhas impotentes de intensos sofrimentos humanos e em muitas situações medicalizam a fome, a infelicidade, o desajuste familiar e a dor moral das desigualdades sociais. Utilizam-se de ambientes por demais insalubres, tanto para trabalhar quanto para repousar.

Médicos concursados e capacitados a docentes de escolas de medicina ou admitem um salário base aquém do mínimo nacional recebido ou suportam os valores das suas gratificações congelados por 10 anos. Se se reúnem em cooperativas médicas, são lesados em suas esperanças, vitimados por experimentações administrativas de impostores ineptos.

Na atividade, os médicos cada vez mais perdem suas autonomias, submetidos a intensa judicialização da prática que os leva à perene servidão branca. Chegam a ponto de realizarem atendimentos, sem indicações psicoclínicas, a menores em conflito com a lei, nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), por acatarem ordens judiciais.

Induzidos à busca agregada por resultados imediatos, médicos sobrepõem tecnologias desumanizadas como critério de progresso e toleram esse dispositivo ideológico de comando da clientela pela razão instrumental de manutenção do status quo. Legitimam um mundo clínico mediado pela regulação burocrática e pela imagem social desgastada e a tempos distorcida pela mídia perante a opinião pública brasileira.

Em constante conflito entre o ideal da profissão e o impacto das realidades, agora os médicos estão adoecendo. A depressão e o burnout têm sido companheiras. "A medicina faz-nos morrer mais tempo" ¿ Plutarco (46¿126 d.C.). Se Hipócrates (460-377a.C.), o pai da medicina, tivesse advinhado, não faria um juramento. Teria deixado o testamento: "Aos filhos que enveredarem pela árdua missão do curar, do cuidar e do confortar semelhantes como tais, deixo o saber, a autonomia e a arguta e eterna vigilância de não se deixarem nunca substituir nos domínios de suas únicas e intransferíveis responsabilidades, em nome do sublime objeto da medicina: o ser humano".