Título: Luta pela paz
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 13/06/2011, Mundo, p. 12

Criada há 66 anos, a ONU e seus diferentes órgãos enfrentam o desafio de se adaptar ao novo contexto mundial, bem diferente do existente logo após a Segunda Guerra. Candidato à reeleição, o secretário-geral da entidade viaja ao Brasil nesta semana

A Carta das Nações Unidas foi assinada em 26 de junho de 1945, em San Francisco (Estados Unidos). Trazia, em seu preâmbulo, as determinações de seus 51 países-membros à época: salvar gerações sucessivas da escória da guerra; reafirmar a fé nos direitos humanos, na dignidade e no valor da pessoa; estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito, decorrentes de tratados do direito internacional, sejam mantidos; e promover o progresso social. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU) ocorreu quando o planeta começava a tratar as feridas da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto. Quase 66 anos depois, o mundo vive outro contexto, e a ONU atrai críticos vorazes. Muitos creem que o organismo criado para garantir a paz e a segurança internacionais ficou estagnado, atrelado a conceitos não mais intrínsecos ao tempo atual. Na sexta-feira, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, realiza sua segunda vinda ao Brasil. Às vésperas da viagem, que ocorre dias depois de o sul-coreano manifestar seu desejo de ser reeleito para o cargo, o Correio consultou quatro renomados especialistas sobre a importância das Nações Unidas na atualidade.

Professor da Faculdade de Governo da Universidade de Harvard e autor de Worst of the worst: Dealing with repressive and rogue nations (O pior do pior: lidando com nações repressoras e párias), Robert Rotberg acredita que as Nações Unidas mudaram nos últimos anos ao reconhecerem a necessidade de aperfeiçoar sua capacidade de aplicar a paz ¿ como apregoa o Capítulo 7 da Carta. "Agora, a organização se incumbe de assegurar os resultados da Responsabilidade para Proteger", afirma, referindo-se a um conjunto de princípios focados na prevenção do genocídio, dos crimes de guerra, dos crimes contra a humanidade e da limpeza étnica. "Se fosse criada hoje, a ONU teria uma estrutura diferente", acredita. Com tantas transformações, Rotberg duvida que haja espaço para o Brasil na função de membro permanente do Conselho de Segurança, ante os inúmeros competidores por uma vaga.

De acordo com ele, a ONU precisa conviver com limitações inatas ao seu propósito. "Por tratar-se de uma instituição de todos os países, ela precisa respeitar os pontos de vista da minoria dos membros, especialmente na Assembleia-Geral e nas organizações subsidiárias", opina. Ele vê como grandes desafios o futuro da Responsabilidade para Proteger, o trabalho das forças de paz e a aplicação da estabilidade no Congo, na Somália e no Sudão.

Colega de Rotberg na mesma faculdade em Harvard, o cientista político Graham Alisson lembra que a ONU foi fundada por 51 países e hoje possui 192 Estados-membros, precisando lidar com uma lista crescente de responsabilidades. "Se considerarmos seu papel em expansão ¿ do estabelecimento de tribunais criminais para Ruanda e para a ex-Iugoslávia à exigência para que os países garantam a eficiência na segurança do material nuclear ¿, a ONU tem mostrado grande capacidade de responder aos desafios globais", observa. Graham vê as Nações Unidas como um reflexo do ambiente internacional, apontando na direção da reforma de sua estrutura original.

No entanto, ele adverte que é excepcionalmente difícil reformar as estruturas internas das burocracias maiores, especialmente nos setores onde existe uma vasta gama de interesses. "Qualquer mudança importante e significativa, especialmente no Conselho de Segurança, precisa ser tomada pelos próprios Estados-membros", observa. Com a hercúlea tarefa de proteger os direitos internacionais de cada país, a ONU também tem a tarefa de remover as ameaças à paz e suprimir atos de agressão. "Apesar de todas suas falhas, a Carta da ONU deve permanecer como padrão dourado para a paz internacional, a segurança, o progresso social e o desenvolvimento humano", afirma Alisson.

O cientista político indiano Parag Khanna, autor de How to run the world (Como dirigir o mundo), vê pontos positivos e negativos na imensa estrutura das Nações Unidas. "Muitos setores são antiquados, ineficientes, lentos ou carecem de recursos. E isso inclui o Conselho de Segurança", exemplifica. "Outros órgãos, como o Programa Mundial de Alimentação, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Alto Comissariado para Refugiados, trabalham bem e prestam benefícios diários para pessoas de todo o mundo", acrescenta. Khanna defende que a ONU colabore mais com o setor corporativo e as organizações não governamentais, a fim de viabilizar suas missões internacionais. "A maioria dos órgãos das Nações Unidas tem sido pouco reativa às oportunidades de parceiras público-privadas", atesta o indiano.

Líbia e Síria O papel dúbio do Conselho de Segurança na mediação das crises na Líbia e na Síria conduziu-o à esfera da polêmica. Seus membros aprovaram a resolução nº 1.973, autorizando o uso de força contra as tropas do ditador líbio, Muamar Kadafi. No entanto, não chegou a um consenso para deter a repressão exercida pelo presidente sírio, Bashar Al-Assad. O norte-americano Edward C. Luck, conselheiro de Ban Ki-moon no nível de subsecretário-geral, afirma que organizações regionais forçaram o Conselho a tomar uma atitude enérgica. "Elas não o fizeram, no caso da Síria, porque temem as consequências de instabilidade no país, dada sua posição no meio de uma das áreas mais tensas do planeta", diz Luck (leia entrevista abaixo).

No caso da Líbia, Luck relembra que Kadafi referiu-se aos manifestantes como "baratas" ¿ os tutsis, durante o genocídio em Ruanda, eram chamados de "ratos". "Kadafi disse que suas forças iriam de casa em casa buscar os rebeldes. O prospecto de um banho de sangue em Benghazi parecia real", justifica. O conselheiro sustenta que Ban Ki-moon engajou-se em uma diplomacia pessoal e manteve uma saída pacífica em aberto. "O Conselho tentou impor sanções e ameaçou apelar ao Tribunal Penal Internacional, mas Kadafi não deu a mínima. Agora, o organismo considera uma resolução sobre a Síria, mas não está certo se haverá consenso."

Pontos de vista Como o senhor avalia o desempenho de Ban Ki-moon à frente da ONU?

Robert Rotberg, professor da Faculdade de Governo da Universidade de Harvard "Ban Ki-moon está se saindo melhor do que muitos dizem. Ele está tratando os temas certos, atacando os setores de crise corretos e falando da maneira como um secretário-geral deveria falar. Poderia ser mais assertivo em algumas áreas, como os direitos humanos, mas perderia apoio da China e da Rússia. Ban está empurrando (a luta contra) a mudança climática como ninguém fez. Eu acho que ele poderia mostrar uma liderança mais forte em relação à Líbia, à Síria e ao Zimbábue, mas seus instintos de proteger a ONU contra os extremistas no interior da organização são sensíveis."

Grahan Allison, professor da Faculdade de Governo da Universidade de Harvard O secretário-geral fez uma mudança realista, a fim de se concentrar mais na promoção da energia limpa e do desenvolvimento sustentável. Enquanto os países não estão dispostos a unir esforços para combater as mudanças climáticas, o secretário-geral provará ser mais útil ao avançar uma agenda de curto prazo de ações concretas, enquanto empresta sua voz ao que chamou de "o maior desafio coletivo que encaramos, como uma família humana". Também foi um oponente vocal dos abusos dos direitos humanos e um crítico voraz das ações brutais tomadas pelos regimes árabes contra seu povo."