Depois de quatro anos de farra e de irresponsabilidade no manejo das contas públicas, a presidente Dilma Rousseff pede ao Congresso a legalização da esbórnia fiscal - em outras palavras, a abertura de uma porta para qualquer desmando em seu segundo mandato. Para abrir essa porta, senadores e deputados terão somente de aprovar o projeto de alteração da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deste ano, enviado ao Legislativo na terça-feira. Pelo projeto, o governo poderá até converter em superávit um déficit primário, realizando uma façanha até agora fora do alcance de sua mundialmente famosa contabilidade criativa. Será a desmoralização final do regime de metas fiscais, um dos pilares cada vez mais precários da também precária estabilidade econômica. Os outros dois pilares, o sistema de metas de inflação e o esquema de câmbio flexível, também foram severamente erodidos a partir de 2011, por uma mistura corrosiva de populismo, incompetência e permissividade.
De janeiro a setembro, a receita líquida do governo central foi 6,4% maior que a de um ano antes, em valores correntes. Mas a despesa ficou 13,2% acima da contabilizada nos mesmos nove meses de 2013. Com a despesa crescendo o dobro da receita, outras explicações soam como escárnio. Mas o governo insiste em posar como vítima das circunstâncias.
Se o projeto for aprovado, a presidente Dilma Rousseff será autorizada a abater da meta de superávit primário um valor maior que a própria meta. Essa mágica tornará possível transformar um valor negativo em positivo. Será um passo importante para a conversão da contabilidade pública em alquimia.
Mas quem escrever essa história terá de levar em conta vários passos anteriores. A LDO fixou como meta para o governo central, neste ano, um superávit primário de R$ 116,1 bilhões, mas com abate possível de até R$ 67 bilhões para acomodar investimentos federais.
No começo do ano, o Executivo reviu as contas e diminuiu o desconto para R$ 35 bilhões, adotando como objetivo real um superávit de R$ 80,8 bilhões, destinado ao pagamento de juros. Em setembro, mais R$ 32 bilhões foram adicionados ao desconto e a meta caiu para R$ 49 bilhões. Mas em outubro, quando foram divulgados os números acumulados até o mês anterior, nem esse resultado parecia possível. O desastre fiscal havia surpreendido até os menos otimistas.
Pelos cálculos do Ministério da Fazenda, o governo central - Tesouro, Banco Central (BC) e Previdência - teve em nove meses um déficit primário de R$ 15,7 bilhões. Ou seja, ficou no vermelho mesmo sem contar os juros pagos. É como se um cidadão entrasse no cheque especial mesmo sem pagar as prestações da geladeira e do carro. Pelo critério do BC, baseado na necessidade de financiamento do setor público, o governo central teve um déficit primário de R$ 19,47 bilhões em nove meses. Somado o resultado das estatais federais, o buraco chegou a R$ 20,66 bilhões.
Um saldo equilibrado no fim do ano é quase inimaginável, pelo menos enquanto o governo só dispuser da atual contabilidade criativa (dividendos, pedaladas financeiras, bônus de concessões, etc.). Apesar disso, a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, mencionou no Congresso, ao defender a mudança da LDO, a possibilidade de superávit primário em 2014. Se o Congresso aprovar descontos ilimitados da meta fiscal, essa mágica aritmética será concebível. Até outubro, a soma de investimentos e desonerações, de R$ 135 bilhões, superou a meta original de superávit primário.
Mas nem os especialistas têm dado suficiente atenção ao problema geral das contas públicas. Nos 12 meses até setembro, o déficit nominal - incluídos os juros - equivaleu a 4,92% do PIB, segundo o BC. O do governo central correspondeu a 3,75%. Em 2013 a média dos déficits da zona do euro ficou em 2,9%. A da União Europeia, em 3,2%. Os dados deste ano são parecidos. Em relação às contas públicas, o Brasil está, portanto, bem pior que países mais afetados pela crise de 2008. Mas o País, segundo a ministra Belchior, está em situação "bastante confortável".