Invadido na segunda-feira, o conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida em
Guadalupe se transformou, ontem, num barril de pólvora. Traficantes do Complexo do Chapadão
montaram barricadas em ruas do entorno e, no alto do morro que fica atrás do condomínio, na Favela
Gogó da Ema, homens com armas e radiotransmissores monitoravam o vaivém na região. Diante dos
prédios, dezenas de pessoas passaram a manhã gritando palavras de ordem, xingando e ameaçando os
dez policiais militares que foram mobilizados para a difícil missão de tentar controlar os ânimos. À noite, o
clima de medo na região aumentou com uma perseguição de PMs a dois bandidos que circulavam pela
Avenida Brasil num carro roubado. Após uma troca de tiros, um deles foi capturado na via e o outro fugiu
para o Guadalupe Shopping. Lojistas e clientes ficaram em pânico, mas o bandido acabou sendo
alcançado. A polícia apreendeu dois fuzis e uma pistola.

Na área da invasão, durante todo o dia, a tensão era grande entre policiais e invasores. Ainda não há
prazo para a retomada dos imóveis.
— Não vamos fazer nada sem o devido planejamento porque qualquer operação poderia colocar muitas
pessoas em risco. Há muitas crianças no local — disse o comandante do 41º BPM (Irajá), coronel Luiz
Carlos Leal, acrescentando que também aguarda um mandado judicial de reintegração de posse para
poder agir.
HISTÓRICO DE PROBLEMAS DURANTE AS OBRAS
De acordo com o engenheiro e sócio-gerente da construtora BR4, Luiz Carlos Brito, o clima de tensão
no condomínio de 11 blocos e 240 apartamentos não surgiu agora. Ele contou que, a partir de meados de
2011, operários da empresa, responsável pelas obras do conjunto, passaram a ser frequentemente
assaltados e ameaçados por bandidos da região.
— Erguer esse condomínio foi um trabalho muito difícil. O canteiro de obras foi invadido várias vezes
por bandidos, que assaltavam nossos funcionários e roubavam material de construção. Em certa ocasião,
um bando chegou a levar uma escavadeira, que a polícia recuperou numa das favelas do entorno —
lembrou Brito.
Além de constantes roubos, operários e engenheiros que trabalharam na obra contaram que, mais de
uma vez, encontraram cadáveres na área interna do condomínio. Todos os problemas ocorridos durante a
construção do conjunto residencial foram relatados à Polícia Civil, afirmou o sócio-gerente da BR4. Ainda
segundo ele, o clima de insegurança se tornou um grande obstáculo para a contratação de mão de obra.
Isso, de acordo com Brito, acabou provocando um atraso na conclusão dos trabalhos, que estava
inicialmente prevista para o fim de 2012. Foi em setembro daquele ano que a Secretaria municipal de
Habitação realizou um sorteio para definir quais famílias ocupariam os apartamentos do programa Minha
Casa Minha Vida em Guadalupe. Hoje, a entrega das unidades está programada para o mês que vem.
MINISTÉRIO RECEBE 30 DENÚNCIAS DE INVASÕES
No dia seguinte à invasão, o departamento jurídico da construtora BR4 registrou o caso na 39ª DP
(Pavuna) e apresentou um pedido de reintegração de posse à 1ª Vara Cível do Tribunal de Justiça (TJ) do
Rio. De acordo com a assessoria de imprensa do TJ, o processo ainda não foi analisado. Já a Caixa
Econômica Federal, que financia o programa Minha Casa Minha Vida, informou ter recorrido à Justiça
Federal, sem entrar em detalhes sobre a ação.
Em nota, o Ministério das Cidades, que administra o programa com o apoio de municípios, revelou que,
somente este ano, recebeu 30 denúncias sobre invasões em condomínios do Minha Casa Minha Vida no
Estado do Rio. Por sua vez, o Ministério da Justiça destacou, também por meio de uma nota, a
necessidade de uma parceria com a Secretaria de Segurança para traçar estratégias com o objetivo de
resolver o problema. Procurado para comentar o assunto, o governo estadual não se manifestou.
Ontem, o prefeito Eduardo Paes descartou qualquer possibilidade de cadastrar os invasores num
programa habitacional de sua gestão:
— Aquilo ali é casa para pessoas humildes que se inscreveram no programa Minha Casa Minha Vida.
Aquilo não é coisa de malandro, e vagabundo tem de ser retirado. Ter traficantes ali é uma prova de que
isso é uma indústria de ocupação. Tem que ter ação da polícia. Não vamos deixar mais um território
liberado para o tráfico. O Minha Casa Minha Vida é um programa para pobre, e não para malandro
travestido de pobre.
OCUPANTES SE NEGAM A DEIXAR APARTAMENTOS
Invasores disseram que resolveram ocupar os apartamentos do conjunto de Guadalupe porque não
acham justo que moradores de outras regiões da cidade tenham sido contemplados no sorteio que definiu
quem viverá nas unidades, destinadas a famílias com renda mensal de até R$ 1.600.
— A prioridade para esses apartamentos tinha de ser nossa. Vivemos aqui ao lado em condições
miseráveis — reclamou Maria Luiza de Oliveira, que se mudou para o conjunto com três filhos.
Grande parte dos invasores saiu de uma favela de barracos de madeira e papelão que se formou a
poucos metros do conjunto. Apesar de filmagens terem mostrado homens armados dentro do conjunto
habitacional, ninguém admitiu a participação de traficantes do Complexo do Chapadão na ação.
— Estamos cansados de pregar pedaços de pau para construir barracos e ver tudo desmoronar quando
chove — disse outra invasora, Rute Vila Nova, acrescentando que planeja ‘‘resistir até o fim’’.

CRÍTICAS À IMPLANTAÇÃO DO PROGRAMA
A situação de tensão em Guadalupe é, para especialistas em urbanismo e sociólogos, resultado de
falhas no planejamento de programas habitacionais para a população de baixa renda.
— Ao lançar empreendimentos em áreas pobres, o poder público foca apenas na construção das
moradias, não pensa no entorno, na necessidade de planejar melhor a cidade. Não adianta entregar
apenas as chaves dos apartamentos para três mil pessoas, pois elas chegarão ao novo endereço numa
situação fragilizada. A região como um todo também precisa ganhar melhorias — disse Luiz César de
Queiroz Ribeiro, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da UFRJ.
Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, Sérgio Magalhães pensa de forma parecida:
— É preciso não apenas construir, mas oferecer serviços públicos. Não interessa se o conjunto é
erguido dentro de uma comunidade, o que não pode é essa comunidade ser dominada pelo tráfico.
Alba Zaluar, antropóloga e professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticas da Uerj, acha que, no
caso do Minha Casa Minha Vida, falta entendimento entre população e governo:— É preciso considerar que há muitas pessoas querendo a mesma coisa. Os sorteios atendem uma
parte, tendo a outra que aguardar. Mas a sociedade deveria ser mais ouvida sobre o programa, talvez falte
diálogo nas regiões contempladas.
Para o sociólogo Gláucio Soares, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, o poder público está
sendo desafiado em Guadalupe:

— Invasões podem diminuir se o país se desenvolver com igualdade. Entretanto, em alguns casos, a
cobrança por parte da população pode ser irracional. Hoje, o que está em jogo é um sistema de valores
que testa até onde vai o papel do Estado.