Não é preciso ter a finura de Marcel Proust para evocar as trapaças do tempo que toldam a memória e fragilizam a vontade. Santo Agostinho tem duras páginas sobre a nossa desgraça na finitude, mortal fuga do Eterno. Dele fomos expulsos pelo erro que nos trouxe a mentira e o declínio até o Apocalipse. Em plano bem menor, os escândalos da vida econômica e política escondem armadilhas que dominam a consciência pública, distorcida pela falsidade cronológica. Temos notícias dos crimes e delitos de modo diacrônico: toda manhã os jornais trazem os "malfeitos". Retomados, tais fatos entorpecem os sentidos. Após alguns anos poucos indivíduos ouvem, olham, sentem, inalam a podre desolação imperante nas instituições pervertidas pelos interesses ilegais.

Sistemática, a vida coletiva pervertida tem outro lado, o sincrônico: no instante em que uma quadrilha assalta certa repartição ou instituto, outra age de modo igual em parte distante ou próxima do poder. A máquina de moer princípios éticos opera em dois registros temporais. A cidadania distraída sempre retoma a cantilena da indignação quando estoura um escândalo, mas não busca o fio que une os atentados aos dinheiros públicos.

Como arrancar, na luz diurna, bilhões destinados às políticas públicas? Ninguém pode fazer tal milagre isoladamente. Para o sucesso toda uma rede é armada, técnicas precisam ser movidas, hábitos comuns reúnem os meliantes. A corrupção não é singular, mas necessariamente coletiva. Estudos analisam os atos de quem rouba o erário. A intelecção dos agentes corruptos une as trocas de favores, "amizades", apadrinhamentos, interesses sociais e políticos (J. Boissevain, Friends of Friends: Networks, Manipulators and Coalitions, 1974).

Para corromper normas e projetos são inventadas novas e sutis formas de acesso às informações, às pessoas, às influências. Uma estrutura triádica, no entanto, sempre opera no setor escuro da vida política: existem os clientes, postos nos dois lados do balcão, e os agenciadores (os brokers), que distribuem cargos e recursos, garantem fidelidade aos pactos. Combater a corrupção requer controlar os "clientes" e quem os favorece. O caso Alberto Youssef é claro: ele serviu como broker para corrompidos nos dois polos, o público e o privado. Não basta punir um ou dois integrantes da rede, os três devem receber sanção negativa. A tarefa requer forças que vão além de polícia, Justiça, controladorias. Todos os que pagam impostos deveriam agir como fiscais dos cofres públicos. É mais fácil, entretanto, abrir o jornal, ligar a TV ou o computador e assumir o rito inútil da indignação que leva... à hipnose e ao esquecimento.

Com o moderno Estado foi inoculado na massa dos contribuintes o dogma de que existem funções explicitamente públicas, desempenhadas por pessoas cujos poderes são limitados pela ordem jurídica. Nessa forma de pensar, apadrinhamentos, favores recíprocos, apoios financeiros para eleger parlamentares e governantes permanecem na penumbra, raramente surgem na cena para "desacreditar a ordem legal". Mas todos sabem e ninguém confessa: as ligações perigosas entre clientes e brokers definem a política "realista" que gera as referidas trocas de dinheiro, clientela, sufrágios eleitorais (Della Porta, D. e Mény, Démocratie et Corruption en Europe, 1995).

No Antigo Regime o rei distribuía favores aos nobres e clérigos para manter o trono. Na época já existiam os "padrinhos", os clientes e os brokers, que abriam a via para os cargos e dinheiros públicos. As revoluções modernas instauraram o regime parlamentar. Nele desapareceriam os benefícios do monarca. Pobre ilusão, pois os parlamentos reforçam "as técnicas do favor e, com elas, o apadrinhamento e a clientela também se modernizaram. Nem a politização, nem a burocratização acabam com elas"(F. Monier, Patronage et Corruption Politiques dans l'Europe Contemporaine, 2012). Os elos entre as formas privadas (e públicas) para o enriquecimento de políticos e líderes econômicos foram instaurados na própria gênese do Estado parlamentar.

As empresas dependiam do quadro normativo e fiscal do Estado, concessões e contratos governamentais iniciam sua era dourada. E os políticos passam a precisar dos empresários para seus assuntos eleitorais. Ambos buscavam informações para suas estratégias específicas. Na Inglaterra uma "private law" da House of Commons devia ser votada sempre que iniciativas no campo ferroviário eram empreendidas. O lobby tem papel relevante. Desde 1830 os empresários do ramo se introduzem no Parlamento, em 1860 eles já eram 200. Ali uniam o papel de representantes de empresas e do eleitorado. Surgem os agentes parlamentares e o lobby profissional. Tais agentes operam com parlamentares, intermedeiam o trato entre firmas, governo, deputados. Em 1867 aparecem as United Railway Companies e várias associações visando ao lobby. Elas controlam o Board of Trade, aprovam ou impedem leis entre 1870 e 1880. Na França ocorre algo similar. Desde 1870 os deputados pertencentes à centro-direita ocupam 50 cargos administrativos em grande empresas do país: finanças, ferrovias, mineração, indústria pesada, comércio, seguros (J. I. Engels, in Patronage et Corruption, citado acima). Só no século 20 começa, na Europa e nos EUA, o controle efetivo dos tratos entre empresas privadas e governos.

O que ocorre no Brasil, portanto, deve ser visto em perspectiva temporal: aqui ainda se pratica a simbiose de empresários e políticos com vista a levar recursos públicos para os cofres das firmas privadas e para os partidos que assumem nas administrações e nos parlamentos (municipais, regionais, nacional) a função de lobistas, truque que tem o nome de "bancada X ou Y" do Congresso. Financiamento público de campanhas políticas sem regulamentar o lobby e impedir que líderes operem como brokers nos três Poderes é mover o sorvedouro orçamentário de uma fonte para colocá-lo em outra, menos visível, mais tirânica.