Título: Antijogo da Copa
Autor: Machado, Antônio
Fonte: Correio Braziliense, 18/06/2011, Economia, p. 21

Para recuperar o atraso e chegar a 2014 com tudo pronto para a Copa do Mundo, programada para 12 cidades-sedes, e em 2016 às Olimpíadas, no Rio de Janeiro, o governo partiu para o jogo bruto.

Antijogo, o jargão dos boleiros para as jogadas desleais, define bem a bagunça aprovada às pressas na Câmara, na quarta-feira, sob o teto da Medida Provisória (MP) nº 527 ¿ originalmente baixada pelo governo Dilma Rousseff para criar a Secretaria da Aviação Civil e alterar atribuições de algumas áreas do Palácio do Planalto.

Nada disso já atendia um dos mandamentos constitucionais para as MPs: a urgência. Era o caso para projeto de lei, instrumento usual do processo legislativo usurpado pelo emprego discriminado das MPs pelos governos desde que a Constituição de 1998 as concebeu. Essa história fica para outro dia. A tal da MP 527 já vale um folhetim.

Ela foi desfigurada do objetivo inicial com um projeto de lei de conversão, com jeito de coisa crua, do deputado José Guimarães (PT-CE), relator da MP. A emenda teve até mudanças feitas à mão.

O resultado é que, por maior que seja a lisura na aplicação dos dinheiros públicos que tais eventos vão absorver a goladas, ficará a suspeita de mandracarias entre as empresas envolvidas, sobretudo empreiteiras, e as autoridades federais, estaduais e municipais.

O projeto do governo aprovado pela Câmara cria um atalho à lei de licitação vigente, batizado de Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC). A intenção é agilizar a seleção das construtoras e outros provedores de serviços para os eventos esportivos. Ao ritmo do sistema tradicional das licitações, segundo o governo, o risco é não ter nada pronto para a Copa das Confederações, em 2013 ¿ uma espécie de preliminar do grande show do futebol em 2014. E então?

Então, ficou assim: a pretexto de compensar o atraso das obras com o relaxamento das licitações, o governo, entre outras jabuticabas, vai manter em sigilo o custo estimado das obras. Somente órgãos de controle poderão conhecê-lo. Mas não poderão divulgar os valores.

Jamais se saberá quanto a Copa vai custar nem se um estádio, por exemplo, custou os olhos da cara. O deputado Guimarães disse que o processo às cegas induz a apresentação de propostas com "valor de mercado". Líder do PT na Câmara, o deputado Paulo Teixeira (SP) alegou que o Tribunal de Contas da União (TCU), a Controladoria-Geral e a Advocacia-Geral foram ouvidas e concordaram. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, certamente não foi. Para ele, o sigilo do orçamento das obras é uma decisão "escandalosamente absurda".

Dilma ficou irritada A presidente ficou brava com as suspeitas. "Não é possível dizer que o governo está garantindo roubalheira", reagiu. O sigilo, diz ela, forçará as empreiteiras, ao desconhecer quanto o governo está disposto a pagar, a propor o melhor custo de construção. Pode ser.

A questão é que toda construtora experiente conhece a estimativa de custo para diversas situações de terreno, projeto arquitetônico e localização do projeto. A temeridade do sigilo é mantê-lo depois de selecionada a proposta e iniciada a construção. Isso não pode.

Geografia esquisita Há mais questões polêmicas para o Senado, próxima etapa da MP da Copa, avaliar com lupa. É duvidoso que o faça. Lá, o governo tem, também, larga maioria. Os deputados aprovaram outra emenda difícil de explicar. Ela estende o regime afrouxado de licitação para até 350 quilômetros das cidades-sedes. Equivale à distância da cidade paulista de São José dos Campos ao Rio de Janeiro. Ou de Brasília à cidade goiana de Itumbiara. Líder do governo na Câmara, Candido Vaccarezza (PT-SP) explicou assim essa geografia esquisita: "A Copa acontece numa capital, mas há todo um suporte à sua volta".

A oposição suspeita de outra razão: incrementar o volume de obras públicas entre as próximas eleições ¿ a municipal, ano que vem, e a geral, em 2014 ¿, sem que o eleitor saiba quanto pagou por elas.

Neymar que se cuide Com tantos descaminhos, sabe-se quem vai levar o pato, se faltar o caneco, a esperança dos políticos de que o eleitor releve todas essas, digamos, "questiúnculas": ele mesmo, Pato, o craque Neymar e Mano Menezes. As costas da Seleção precisam ser largas, já que o governo também conferiu à Fifa e ao Comitê Olímpico Internacional, no caso das Olimpíadas, a exclusividade de alterar os projetos.

"A Fifa vai virar um balcão de negócios", zomba o deputado Chico Alencar (Psol-RJ). Também de risco é a dispensa de projeto prévio, o que deixa o governo no escuro, assim como a decisão de entregar ao vencedor a obra toda: da modelagem à construção. Haja sorte...

Como botão de pânico Por que tudo isso? Como diz o economista Fernando Montero, entre estádios e aeroportos, "alguém contou o tempo que falta para fazer tanta coisa e apertou o botão de pânico". O ex-presidente Lula se satisfez em trazer para o Brasil os megaeventos, e nisso ficou.

Agora, é só correria. E pedreiro a gente sabe o que cobra, se lhe for pedido pressa. Pragmático, o nosso requisitado colaborador diz não se assustar com o sigilo. Sua lógica: "Nada é mais fiscalizado que aquilo dito abertamente como não fiscalizado. Preocupa-me mais a quantidade de agendas, complicadíssimas, perigosas". Vai ser tão emocionante quanto a Copa ver o governo correr atrás da disciplina econômica. Mas o que não fazemos para pôr a mão no caneco?