Um beco sem saída

O pensamento de Churchill de que a democracia é a pior de todas as formas de governo, excetuando-se as demais, tem o mérito das frases feitas ao comunicar de forma clara uma ideia, mas padece do aspecto negativo dos bordões que é simplificar a complexidade do tema.

Não há quem não se autoproclame "democrata", mas, como a História demonstra, muita barbaridade contra as liberdades é cometida em nome da própria democracia.

Nos últimos 20 anos, na América Latina, no ressurgimento do nacional-populismo no continente, bandeiras da democracia são desfraldadas enquanto o autoritarismo avança. Tudo também em nome de duas outras palavras mágicas: "justiça social". As mesmas que justificam atrocidades séculos a fora.

No centro da questão, hoje na América Latina, está o que fazer com a democracia representativa, regime o mais adequado para resistir às naturais pressões e contrapressões da luta política, sem rupturas institucionais e a hegemonia de um grupo político na sociedade.

O bom exemplo é o Brasil; o mau, os países bolivariano-chavistas e os influenciados por eles. Nestes, cassa-se a regra essencial da alternância no poder e atropela-se a independência entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Não é bom caminho, ensina a História.

Mas é sempre presente a tentação da "via rápida" para as reformas que farão a suposta redenção do povo. Trata-se de uma ilusão que costuma cobrar alto preço das liberdades. É caso exemplar o da proposta de uma Assembleia Constituinte apenas para tratar da tal reforma política, assunto tão amplo e intrincado quanto desconhecido pela absoluta maioria da população.

Para a convocação desta assembleia será preciso superar um inamovível obstáculo legal: constituintes só são convocadas em momentos de ruptura, para que o tecido político e social seja restaurado. Esta via rápida para mudanças casuísticas é, portanto, inconstitucional, alertaram juristas e até ministros do Supremo quando a ideia foi lançada pelo PT, no Planalto, nas manifestações de junho do ano passado.

Por uma questão estratégica de segurança jurídica, mudanças na Carta podem ser feitas a qualquer hora, contanto que atendam aos requisitos específicos para tal: votação em dois turnos, nas duas Casas do Congresso, pelo quórum especial de 60% (três quintos). É assim, e até com restrições maiores, nas democracias mais estáveis. E não se trata de coincidência — elas são estáveis e prósperas por terem segurança jurídica.

A pressão das ruas é parte da democracia, mas deve se materializar em propostas encaminhadas pelos canais legais, submetidas aos devidos pesos e contrapesos do estado de direito. Entra-se em um beco sem saída se questões complexas como uma reforma política forem decididas sob achaque do "povo", na verdade representantes de corporações e de organizações ditas sociais, cooptadas à base de generosas doações feitas com dinheiro do contribuinte.

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O povo com a palavra

 

Roberto P. Guimarães 

 

É evidente a falta de vontade do Congresso Nacional para realizar a reforma política que o Brasil espera desde muito e que levou a população a sair massivamente às ruas em 2013, no rastro do protesto contra o aumento das passagens de ônibus. Ou será "excesso" de vontade política para pretender introduzir "mudanças" cosméticas que garantam que tudo continue igual?

A convocação, mediante plebiscito, de uma Constituinte para realizar o que o Congresso não fará parte de dois "paradoxos" do primeiro mandato de Dilma Rousseff.

Sua intransigência com "malfeitos" revelou-se ao demitir sete ministros mal iniciado o governo. Infelizmente, tal postura não teve seguimento diante de outros "malfeitos" que mancharam o ideário ético até mesmo de seu partido. A máquina corruptora instalada no Estado para benefício da maioria dos partidos não foi tampouco objeto de atitudes contundentes.

Igualmente paradoxal foi o desdobramento da proposta, em resposta às manifestações, de convocação de uma Constituinte exclusiva para a reforma política. A busca de governabilidade levou Dilma a recuar diante das reações previsíveis, retrógradas, corporativistas e patrimonialistas do Congresso.

Tais paradoxos devem ser entendidos pela ausência de uma ampla mobilização que indique que a presidente continua na direção correta de mudança, respaldada pela soberania popular. É imperioso atuar com a sociedade para demonstrar que o Brasil já não pode esperar por uma reforma que seja capaz de extirpar a corrupção e fortalecer a República. Uma consulta simples, com uma só pergunta: se a população aprova, ou não, a convocação de uma Constituinte exclusiva para a reforma política.

Existem, por certo, opiniões contrárias à proposta, mas persiste também a desqualificação desta como se fora uma forma canhestra de "bolivarianismo", um comportamento típico dos que padecem a doença infantil do autoritarismo patrimonialista tão bem dissecado por Raymundo Faoro. Nada que o antídoto de um plebiscito não possa curar.

A encruzilhada atual requer que o governo utilize o capital político renovado pelas urnas para alcançar um mandato específico para a reforma, que poderá pôr fim aos arranjos institucionais de governabilidade, que engendram a corrupção e põem em risco a sobrevivência da democracia. Uma reforma que permita ao governo promover políticas públicas de interesse comum, e não as que satisfaçam exclusivamente aos interesses particulares dos grupos que ofereçam a base de sustento para o atual mandato.

Se não for uma Constituinte, o que — nos fatos e não na retórica — poderá promover a reforma política que todos anseiam e que o Congresso jamais fará, e não somente mais uma rodada de gatopardismo pós-moderno? Pois que decida o povo, em plebiscito.

Roberto P. Guimarães é cientista político