As eleições fizeram com que ficasse mais claro para mim algo que vinha observando há bastante tempo: a exclusão da classe média das políticas públicas. Ela não esteve presente em nenhum debate e como se verá foi ela quem mudou o desenho geopolítico do voto. Ficou famosa uma intervenção da filósofa grã-petista Marilena Chauí, quando afirmou com todas as letras: “Eu odeio a classe média. A classe média é o atraso de vida. A classe média é a estupidez.” Esse momento de injustificável descontração intelectual foi tão radical que o então presidente Lula, que encerrava um seminário, tentou corrigir, mas o estrago já estava feito e registrado.

Recordei-me com nitidez quando residi na França, no início da década de 80, e testemunhei a campanha e a vitória socialista nas eleições presidenciais de 1981. Em um dos debates, Giscard fez uma ironia infeliz em relação aos comunistas. Mitterand aproveitou o erro e com voz solene disse: “Você se esquece que eles trabalham, pagam seus impostos e lutaram na guerra.”

Transmutando essa mesma lógica para nosso país, podemos afirmar que a classe média trabalha duro, paga seus impostos e vai à guerra todos os dias. Trabalha quatro meses por ano para pagar impostos ao governo. Com os recursos que sobram dos outros oito meses, tenta equilibrar seu orçamento para manter o padrão de vida da família. Paga sua conta de luz sem qualquer desconto e se prepara para a bordoada que vem a caminho. Custeia os estudos de seus filhos e os aumentos anuais do material escolar a cada início de ano letivo, que trazem embutidos impostos de 30%, o que só existe aqui, pois acredita que a educação ainda é o melhor investimento que pode fazer para o futuro deles.

Como tem carro, sabe que as multas viraram instrumentos de arrecadação e não possuem nenhum conteúdo educativo. Falando em arrecadação, quando surge alguma dívida ou pendência fiscal vai às unidades da Receita Federal, recebe senhas e fica horas para ser atendida. À sua frente um pequeno cartaz avisa que em caso de desacato à autoridade pode ser presa. Como a linha divisória entre o que é desacato e o que é divergência é decidida pela autoridade, pode-se perceber como esse contribuinte fica intimidado.

Viaja de avião e padece nos aeroportos com os atrasos das companhias aéreas, sem ter a quem reclamar. Continua aguardando uma lei simples que seria editada na gestão do ministro Nelson Jobim, pela qual os atrasos seriam punidos com multas financeiras. Começa a desconfiar que o projeto foi para a gaveta.

Essa classe formada por profissionais liberais desconta obrigatoriamente de seus salários contribuições para a Previdência Social. Conhecendo a precariedade dos serviços públicos de saúde, paga também um seguro privado. Atualmente, muitas vezes tem de recorrer a um advogado e amparar-se em uma medida liminar para ter o atendimento a que tem direito.

Essa classe representa 52% da população brasileira. Não está contente. Continua a querer saber quanto custou a Copa do Mundo. Sabe que o andar de cima dos ricos não terá nunca sua rotina alterada. Continuará usando ar-condicionado com qualquer tarifa. Percebe que o andar de baixo tem recebido nos últimos anos e governos um número expressivo de auxílios e parte dela até acha justo e concorda com isso. Só não entende por que, estando no meio dos dois, ficou tão abandonada.

Ela moveu-se nessa última eleição. O voto do andar de cima era previsível; como o do andar de baixo também. Quem fez a linha avançar como a floresta em “Macbeth” foi a classe média. Na eleição presidencial de 2002 o PT ganhou do PSDB por 29 pontos, em 2006 por 21, em 2010 por 11 e agora por apenas três. A distância encurtou. A Oposição tudo fará para ser o porta-voz desse rugir das urnas. O governo, se acreditarmos nas suas promessas de reconstrução, tentará reconquistar o território perdido. É oportuno lembrar o verso de outro gênio, João Cabral, que nos ensinou “o que o canavial sim aprende do mar: o avançar em linha rasteira da onda”.