No 'divã' da tv

Numa entrevista na qual percorreu a fundo as lembranças da ditadura militar do Chile, a presidente do país, Michelle Bachelet, contou ao programa "Yo, el que no conocías", da TV Chilevisión, detalhes da vida dela durante os anos de chumbo. Falou da morte do pai após sessões de tortura, comentou sobre o que ela e a mãe sofreram - presas pelo regime e o posterior exílio - e confessou que gostaria de reencontrar um namorado da época, que após lutar contra os militares foi tido como delator e traidor e hoje é dado, oficialmente, como "detido desaparecido". A ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet, entre 1973 e 90, deixou mais de três mil mortos e torturou cerca de 38 mil pessoas, segundo dados oficiais.

A memória retrocede logo ao início do regime. Em 1974, ano seguinte ao golpe, o general Alberto Bachelet, pai da presidente, foi preso por se manter fiel ao governo do derrocado Salvador Allende e morreu no cárcere por causa das torturas. Então, Michelle e a mãe, Ángela Jeria, atuaram clandestinamente junto ao Partido Socialista, até serem detidas em janeiro de 1975.

- Sofri tortura psicológica, essencialmente, e alguns golpes, mas não me "tostaram" (referindo-se às descargas elétricas usadas nas torturas) - recorda Bachelet, sobre os detalhes das semanas que ficou em Villa Grimaldi, uma ampla propriedade em Santiago que virou restaurante de luxo e era frequentado pela elite da época. Transformado em centro de detenção após o golpe, o local é onde 236 pessoas foram executadas ou vistas pela última vez.

- Tive sorte em comparação com tantos outros. Muitos deles morreram.

Ao final do mesmo mês de janeiro, Michelle foi solta. A mãe permaneceu detida até começo de fevereiro de 75. Em seguida, as duas foram obrigadas a ir para o exílio. Seguiram para a Austrália, onde morava o único irmão da presidente.

- No começo, tinha muita raiva, uma dor infinita - revela Bachelet. - Sentia indignação. Não imaginei naquele momento estar dialogando com pessoas com as quais depois fui capaz de dialogar.

Mas os fantasmas da ditadura foram buscá-la na distante Oceania, quando Bachelet recebeu um telefonema de Jaime López Arellano, dirigente socialista no Chile, namorado dela à época do golpe. Ele a chamava à antiga Alemanha Oriental comunista, para onde Bachelet decidiu ir e permaneceu até fevereiro de 79, quando foi permitido o retorno dela e da mãe ao Chile. López já havia voltado, quando Bachelet recebeu a notícia de que ele havia sido detido pela Dirección de Inteligencia Nacional, a polícia política de Pinochet.

- Mesmo preso, ele (López) se encontrou com um integrante do Partido Socialista e lhe passou uma carta destinada a mim. Levaram-me a carta, onde ele conta estar preso. Pedi para que me informasse onde estava e tudo mais.

'traição pessoal à causa'

Entretanto, em seguida, López desaparece. E começam a especular sobre colaborações dele com a ditadura.

- Há duas versões. Uma de que ele, sob tortura, entregou nomes. Apesar disso, viveu em casas de pessoas cujos nomes não delatou. Outros dizem que entregou certos nomes porque ameaçaram matar a mim e minha mãe no estrangeiro - conta Bachelet. - Foi muito duro, porque eu tinha o compromisso com o dever, era jovem, era preto no branco, e vivi como uma traição pessoal e à causa.

Analistas políticos chilenos dizem que a convivência com esse tipo de situação provocou a conhecida desconfiança política de Bachelet.

- A sombra de Jaime López a persegue. O mito dele não está morto, volta a aparecer e segue rondando - ressalta o escritor Javier Ortega, autor de "Bachelet, la historia no oficial".

Ao final, a presidente revela o desejo de saber o paradeiro dele.

- Agora, mais velha, vejo de uma maneira distinta, mais madura. Gostaria de saber o que se passou com ele: se está desaparecido, morto, se está em algum outro lado - conta, acrescentando que poderia se reconciliar: - Sem dúvida, sem dúvida. O que ocorre, é que não sei mais detalhes.

Segundo um relatório da Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, do ano de 1976, López foi detido em 25 de dezembro de 1975 e, atualmente, engrossa a lista de presos desaparecidos. A carta é a última pista de Michelle sobre o ex-namorado.