O mistério do desaparecimento do despachante Odair José Brunocilla, 30 anos, em Santos (SP), em 1978, durante o regime militar (1964-1985) é um dos casos que serão revelados pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). O documento, que será apresentado em 10 de dezembro, contará com a descoberta de outros presos que morreram ou desapareceram enquanto estavam sob a tutela das forças de repressão da época. De acordo com o coordenador da CNV, Pedro Dallari, a lista com nomes de vítimas identificadas pelo Estado brasileiro será ampliada.

Casado e pai de três filhos, Odair desapareceu em 6 de dezembro de 1978, em circunstâncias desconhecidas até hoje. Amiga da família da vítima, a psicóloga Thereza Ferraz, 73 anos, afirma que o despachante virou alvo do sistema de repressão pois ajudava com a documentação de militantes contrários ao regime, que desejavam fugir para o Chile e Argentina. Brunocilla também cooperou com os despachos de perseguidos políticos que vinham do exterior. “Ele fazia o trabalho dele. Não era militante”, afirma.

Além de Odair, pelo menos 59 nomes serão incluídos na lista de mortos e desaparecidos políticos durante o período, com a publicação do relatório da CNV. Como a Secretaria de Direitos Humanos reconhece 362 pessoas, o total de vítimas deve subir para 421. Pedro Dallari afirma, contudo, que o número pode ainda crescer, porque não foi concluído o volume que irá tratar dos perfis das vítimas. “Esses números são só especulação. Ainda não fechamos a lista”, disse ao Correio.

De acordo com o coordenador, o relatório contará três partes. Na primeira, será tratado o contexto geral do regime militar. Depois, haverá textos independentes de temas como militares perseguidos e repressão contra indígenas e camponeses. E a última será dedicada a perfis de todas as vítimas, que foram averiguadas em mais de dois anos de trabalhos da CNV. O documento também contará com uma relação de nomes de pessoas que cometeram graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar.

Mistério
Para o filho caçula de Odair, Roberto José Brunocilla, 37 anos, qualquer informação sobre a morte do pai será um alento. Ele conta que a mãe, falecida há três anos, não tratava do assunto com a família. “Ela se tornou alcoólatra depois disso (desaparecimento de Odair), ficou deprimida. Não falava por medo”, disse. Thereza diz que Vitória Ortega Brunocilla, mãe de Odair, procurou, por vários anos, informações do filho, mas não teve sucesso. Em carta de 28 de setembro de 1980, a avó de Roberto afirma a Ordem dos Advogados do Brasil, que o contratou defensor que recusou o trabalho, porque “há envolvimento de elementos de alto escalão”. Segundo relatos de amigos do despachante, Odair teria sido sequestrado e torturado pela Polícia Federal e seu corpo teria sido jogado no mar.

 

Mais 59 vítimas da ditadura

 

 

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que será entregue à presidente Dilma Rousseff em 10 de dezembro, trará o nome de 421 mortos e desaparecidos políticos durante o período da ditadura militar (1964-1985). O número representa um avanço em relação ao último trabalho de fôlego sobre o assunto realizado no Brasil pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), criada em 1995, que levantou o nome de 362 vítimas, entre mortos e desaparecidos. O levantamento da CNV, que tem o prazo de dois anos e meio para concluir os trabalhos, conseguiu descobrir 59 novos nomes.


A comissão, porém, não antecipa quais são os nomes que farão parte do relatório final e não estão no levantamento da CEMDP. Sabe-se apenas que muitas vítimas foram descobertas graças a depoimentos espontâneos de pessoas que procuraram o grupo, devido à repercussão dos trabalhos, e fizeram relatos de mortes e desaparecimentos que ainda não eram conhecidos e foram esclarecidos pela comissão. Alguns casos relatados foram de brasileiros que morreram no exterior e há também entre os nomes estrangeiros que foram assassinados pelos militares no Brasil.


A maior parte dessas 59 “novas” vítimas, no entanto, são de mortos e desaparecidos que não faziam parte das organizações de esquerda e pertenciam a setores considerados marginalizados da sociedade, como presidiários condenados por crimes comuns, camponeses, operários, índios e outras minorias étnicas, religiosas e de gênero.


Na semana passada, o coordenador da CNV, Pedro Dallari, recebeu um documento da CEMDP, com propostas para o relatório final. A lista de 362 nomes da CEMDP, considerada a oficial do Estado brasileiro, é em sua maioria formada por militantes políticos de organizações urbanas. O documento propõe que casos de desaparecimento ou execução de pessoas pertencentes a setores marginalizados da sociedade também passem a ser tratados pela CEMDP.


A CEMDP também pediu à CNV uma atualização dos dados sobre as vítimas da repressão ditatorial, incorporando os desaparecimentos ou assassinatos cometidos por agentes públicos contra esses setores marginalizados. A presidente da CEMDP, Eugênia Augusta Gonzaga, sugeriu ainda a criação de uma Secretaria Nacional de Justiça de Transição.

TRÊS LIVROS A CNV foi formada em maio de 2012 e deveria ter sido encerrada em maio de 2014, mas conseguiu seis meses a mais de prazo e finalizará o trabalho em 16 de dezembro, menos de uma semana após a entrega do relatório final. Durante o tempo que vigora, os sete integrantes da comissão mais os assessores colheram mais de 1 mil depoimentos e fizeram diligências em sete unidades das Forças Armadas usadas para tortura, mortes e outras graves violações dos direitos humanos.


O relatório final será dividido em três livros, que terão o conteúdo dos 13 grupos de trabalho da CNV. Vão da Guerrilha do Araguaia, passando pela Operação Condor, o funcionamento da estrutura da repressão, o papel da Igreja, as violações contra camponeses e indígenas até os mortos e desaparecidos políticos.


Além disso, a consideração inicial do relatório trará uma posição da comissão sobre a Lei de Anistia. Ainda não há consenso entre os integrantes do grupo, mas a tendência é de que seja recomendado um pedido de revisão da lei para punir os agentes do Estado que torturaram e mataram. A Lei da Anistia é de 1979 e um pedido de revisão foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, mas foi rejeitado por sete votos a dois. Ainda existe um recurso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e uma condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), por não ter punido os responsáveis pelo desaparecimento de 62 militantes do Araguaia.