O governo encaminhou ontem ao Congresso Nacional uma proposta em que praticamente abandona o compromisso de alcançar superavit primário nas contas públicas em 2014. Pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), o setor público teria que economizar R$ 99 bilhões para o pagamento dos juros da dívida neste ano. Até setembro, no entanto, os gastos superaram a arrecadação em R$ 25,5 bilhões, o que tornou o objetivo irrealizável, mesmo com todos os artifícios contábeis permitidos pela legislação. Para poder descumprir a meta de superavit sem desobedecer à lei, a saída encontrada foi modificar as regras. 

A LDO já permitia ao governo abater da meta os recursos aplicados em projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O desconto poderia chegar a R$ 67 bilhões neste ano, mas a área econômica vinha afirmando que não utilizaria todo esse valor. Com a mudança, a margem de manobra será sensivelmente ampliada para permitir o abatimento de tudo o que for gasto com o PAC e com as desonerações tributárias adotadas para estimular determinados setores da economia. Até outubro, a despesa com essas duas rubricas chegou perto de R$ 130 bilhões. Ou seja, se quiser, o governo não precisará realizar superavit nenhum. 

Em audiência na Comissão Mista de Orçamento do Congresso, a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, sustentou, contudo, que o objetivo de fechar o ano com saldo positivo nas contas públicas não foi abandonado. Ela não esclareceu, contudo, qual é a nova meta. "O governo federal fará o maior superavit possível porque achamos que isso é muito importante. Mas queremos garantir os investimentos e a continuidade das desonerações tributárias, porque um dos resultados dessas duas políticas é o emprego para a população", argumentou. 

A ministra disse ainda que o desconto a ser aplicado à meta fiscal vai obedecer a um valor máximo, mas tampouco informou de forma clara qual será o teto. "Já executamos R$ 52,4 bilhões do PAC até outubro. No ano passado, tivemos R$ 78 bilhões de desoneração. Acho que esses são os parâmetros que dão uma ideia em torno do que está esse limite", afirmou, reafirmando que o governo não pretende utilizar a totalidade do abatimento permitido. 

A iniciativa do governo foi fortemente criticada por parlamentares da oposição e por especialistas em contas públicas. O deputado Domingos Sávio (PSDB-MG) chamou a medida de "estelionato eleitoral". "O que governo pregou na eleição é diferente da realidade. Esconderam-se dados oficiais de que a miséria aumentou. Apresenta-se, agora, deficit de R$ 25 bilhões até setembro como se isso não fosse problema. E se pretende mudar a LDO como algo absolutamente natural", afirmou. Apesar da grita dos oposicionistas, o presidente da CMO, deputado Devanir Ribeiro (PT-SP), disse que pretende colocar a proposta em votação ainda nesta quarta-feira. 

Para o economista Felipe Salto, da consultoria Tendências, a mudança é um disparate e vai na direção contrária ao que o mercado esperava do governo. "Trata-se do fim da responsabilidade fiscal e de qualquer apreço pela sustentabilidade monetária como pilar do crescimento. Será muito mais difícil ao próximo ministro da Fazenda recobrar a credibilidade, se é que este será um objetivo relevante no segundo mandato (da presidente Dilma Rousseff)", resumiu. 

"O governo está, simplesmente, disfarçando a meta. Isso é ruim. É mais uma contabilidade criativa. Do ponto de vista dos analistas, não faz diferença porque eles já sabiam que o governo não cumpriria a o objetivo fiscal deste ano. O problema é o ano que vem", avaliou o economista Raul Velloso, lembrando que a proposta será um teste de força do governo no Congresso. "Se ele não conseguir aprovar a alteração, terá ainda muito mais problemas em 2015 ao propor projetos mais importantes e polêmicos, como uma reforma na Previdência", disse. 

Poliana 
A ministra compareceu à comissão também para apresentar o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2015. Assim como já ocorreu com a proposta para 2014, o documento traz previsões fora da realidade, na avaliação de especialistas. Ele prevê, por exemplo, um crescimento de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) e uma taxa de inflação de 5%, estimativas bastante diferentes daquelas feitas pelo mercado financeiro. No último relatório Focus, do Banco Central, a mediana das projeções de bancos e corretoras para a expansão do PIB do ano que vem caiu de 1% para apenas 0,8%, e a inflação prevista foi de 6,40%. "Parece que o governo vive no mundo da Alice ou faz a brincadeira do contente do mundo da Poliana", ironizou o deputado Felipe Maia (DEM-RN) 

Miriam Belchior admitiu que alguns dos parâmetros do PLDO de 2015 serão alterados, uma vez que o cenário internacional é desfavorável e a maioria dos países está reduzindo as projeções de crescimento. A meta de superavit primário prevista para o próximo ano varia entre R$ 143,3 bilhões (2,5% do PIB) e R$ 114,7 bilhões (2%), dependendo da opção do governo de usar ou não os abatimentos permitidos. A ministra não quis adiantar se ela também será modificada. "O Ministério da Fazenda está preparando a nova grade. Até 21 de novembro teremos uma posição", disse. 

Mais R$ 1,77 bilhão em despesas 
No mesmo dia em que propôs alterações na meta fiscal de 2014, o governo editou medida provisória autorizando R$ 1,77 bilhão em novas despesas, sendo a maior parte - R$ 1,68 bilhão - no Ministério da Fazenda. A MP 649 abre espaço no Orçamento para a concessão de subsídios em operações de crédito dos bancos públicos. De acordo com o texto, R$ 1,476 bilhão referem-se a subvenções econômicas em empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). 

"O governo federal fará o maior superavit possível. Mas queremos garantir os investimentos e a continuidade das desonerações tributarias" 
Miriam Belchior, ministra do Planejamento

 

 

Mais perto do rebaixamento

 

Os pífios resultados fiscais do governo, que motivaram o Executivo a adotar nova manobra para evitar o descumprimento da meta de superavit primário deste ano, podem custar ao Brasil a perda do grau de investimento, obrigando o país a arcar com custos “brutais” para a rolagem dos títulos da dívida pública. A avaliação é de Luiz Fernando Figueiredo, sócio da gestora de recursos Mauá Sekular e ex-diretor de Política Monetária do Banco Central durante a gestão de Arminio Fraga, entre 1999 e 2003. 

Para ele, apenas o risco de o país ser rebaixado por uma das três principais agências de classificação de risco (Moody’s, Standard & Poor’s e Fitch) já é suficiente para trazer insegurança ao mercado e incentivar a debandada de investidores, especialmente estrangeiros. “Não é questão de boa vontade. Se o país perder o grau de investimento, boa parte deles não poderá mais aplicar no Brasil, até por disposição estatutária de fundos que administram”, disse Figueiredo ontem, durante almoço promovido pelo Conselho Regional de Economia do Distrito Federal (Corecon-DF). Hoje, 18% do passivo estatal é financiado pelo capital externo.

A fragilidade da política fiscal dominou o debate entre os economistas, mediado pelo também ex-diretor do BC Carlos Eduardo de Freitas, que comandou o extinto Departamento de Desestatização e Liquidações Bancárias, entre 1999 e 2003. Ambos chamaram a atenção para a expansão dos gastos públicos e a piora do quadro de financiamento interno. “A consequência foi uma política fiscal não sustentável, que já resultou no aumento de três pontos percentuais na dívida pública apenas no ano passado”, reforçou Figueiredo.

Anestesia
O cenário externo mais adverso, marcado pela aversão ao risco em países emergentes acentua as dificuldades do país em atrair capitais. “Estamos vivendo um momento desafiador, em que a Europa e a Ásia dão sinais de que não estão nada bem. A questão é saber se os EUA vão conseguir guiar o mundo nessa guinada e serem o motor do crescimento global”, questionou.

Figueiredo observou que as principais economias não digeriram os estragos da crise de 2008. “Os mercados ainda estão anestesiados, sob efeito dessa cortisona que foi a injeção de dinheiro barato dos EUA”, avaliou, referindo-se ao programa de estímulos, concluído em outubro passado, que, desde 2008, despejou US$ 4 trilhões nos mercados. 

“Agora, o Fed (Federal Reserve, o banco central norte-americano) se prepara para dar o segundo passo de normalização da política monetária”, observou Figueiredo, a respeito da esperada alta de juros nos EUA a partir de 2015. O risco é de que o movimento leve investidores a migrarem de nações emergentes, como o Brasil, para mercados avançados. 

Em meio a tantas incertezas no campo externo, emendou Freitas, o melhor seria que o Brasil estivesse com as contas públicas organizadas e inflação no centro da meta, de 4,5%, que não é alcançada desde 2009. “A dúvida é se finalmente estamos saindo da crise mundial ou se ainda teremos alguns buracos pela frente na trajetória de recuperação”, completou Figueiredo.

Dólar sobe
O dólar teve mais um dia de alta, ontem, com os investidores ainda em postura defensiva e aguardando detalhes sobre a política econômica no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. A moeda norte-americana avançou 0,15%, para a R$ 2,558 para a venda. “A cada dia que passa sem novidades, o mercado fica mais ansioso”, disse o operador da corretora B&T Marcos Trabbold. Dilma afirmou que anunciará o próximo ministro da Fazenda depois da reunião do G-20, que ocorre no próximo fim de semana. O clima negativo também dominou a Bolsa de Valores de São Paulo (BM&FBovespa), que fechou em baixa de 0,48%. A queda foi impulsionada pelas ações da Vale, que recuaram mais de 3% com as notícias de que as cotações do minério de ferro podem continuar caindo no mercado internacional, e da AmBev, que teve desvalorização de 1,96%.