Poder não é um lugar que se ocupa. São relações que se estabelecem. Democracia não é regime estático de interação dos Três Poderes, "independentes e harmônicos entre si". Não por acaso, esse papel a eles reservado pelo artigo 2º da nossa Constituição é precedido pelo parágrafo único do artigo 1º, que assinala que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente". 

É a partir dessa compreensão que deve ser feito o debate sobre um Sistema Nacional de Participação Social, instituído em maio pelo decreto presidencial 8.243, recém-revogado na Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei 8.048/14, apresentado pelo PSOL, dará continuidade a essa discussão, que é, afinal, sobre a porosidade do Estado às demandas sociais organizadas. 

Até aqui, o adjetivo prevaleceu sobre argumentos substantivos. Uma leitura enviesada de fatos históricos de há quase um século, como a Revolução Russa, ou o paralelo com experiências contemporâneas singulares, em Bolívia, Venezuela e Equador, fez com que - como no 2º turno da disputa presidencial, aliás - o retórico tomasse o lugar do essencial, e o emocional obscurecesse a racionalidade. 

Conselhos com a presença de representantes da sociedade existem no Brasil desde os anos 30 do século passado, quando, em 1931, foi criado o Conselho Nacional de Educação. Hoje, há cerca de 40 conselhos no âmbito da União, e, nas instâncias das administrações municipais e estaduais, mais de 15 mil - de Saúde, Assistência Social, Cultura, Mulheres, Crianças e Adolescentes, entre outros. 

É também antiga a tendência dos governantes - todos eles! - de "aparelhar" os organismos de interlocução com a população, para amenizar as cobranças e torná-los dóceis aos seus ditames. A superação dessa "estadania", opressora da cidadania emancipatória, só se dará com o fortalecimento de esferas públicas ativas, independentes do Estado. E que, nessa condição, ocuparão seu lugar nos espaços institucionais de embate com os poderes legitimamente constituídos. 

São evidentes os limites da democracia representativa, com eleições dominadas pelo poder econômico e o distanciamento entre representantes e representados. "Nossos sonhos não cabem nas urnas!", clama a juventude em muitos países do mundo. As ruas de centenas de cidades brasileiras, em junho de 2013, foram tomadas por uma energia que, algo anárquica, demandava mais transparência e participação. 

Conselhos, fóruns, conferências, consultas, ouvidorias, audiências e mesas de diálogo fazem bem a quem exerce função pública. São um antídoto à burocratização e às forças que, historicamente, querem um Estado cheio de grandes negócios privados embutidos em seu interior. Combinar democracia representativa com democracia participativa e direta é uma exigência dos novos tempos. 

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Tutela política

Aperfeiçoar o regime de democracia representativa, sem cair em armadilhas do populismo que contrabandeiam mecanismos de "democracia direta", deve ser preocupação constante dos políticos e de organismos da sociedade organizada. 

O desafio é criar-se uma multiplicidade de canais em que o cidadão, sem deixar de se sentir representado nas Casas legislativas, atue de uma maneira mais próxima dos centros de decisão. Em democracias com populações gigantescas, como a brasileira, é fundamental a atenção com a distância entre o Estado e as pessoas. Quanto menor, melhor. 

A criação de comissões com representantes do povo para ajudarem na elaboração e/ou execução de políticas específicas é prática antiga. Assim, como alega o governo, não deveria causar qualquer estranheza a instituição de uma política e de um sistema de participação social, por meio do Decreto-Lei 8.243, em maio. 

Mas a questão é bem outra. Nada contra comissões em si. O problema, e sério, está na constituição do tal sistema, formado por uma constelação de comissões instaladas na administração direta e mesmo estatais, previstas para atuar em fóruns, mesas de negociação, audiências públicas, conferências nacionais, ouvidorias etc. 

Toda esta enorme estrutura criada para supostamente representar a "sociedade civil" ficaria, segundo o decreto, sob a coordenação da Secretaria Geral da Presidência da República, com status de ministério, hoje ainda ocupada por Gilberto Carvalho, a ser substituído no segundo governo Dilma certamente por outro político da alta hierarquia do PT. Não por acaso. 

Na verdade, este "Sistema Nacional de Participação Social" é a materialização em lei da política de aparelhamento do Estado que o partido executa com disciplina desde a chegada ao Planalto, com Lula, em 1º de janeiro de 2003. Sob inspiração chavista. Esta evidência é escancarada quando o 8.243 define, para os fins do sistema de comissões, o que é "sociedade civil": "O cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações." 

Óbvio, não é simples coincidência esse meio político-social ser o mesmo em que o PT exerce grande influência, tem enorme representatividade e atua até mesmo distribuindo recursos públicos por intermédio de ministérios e autarquias que controla (Incra é um desses guichês generosos). 

De qualquer eleição feita neste universo para escolher "representantes do povo" sairão nomes ligados ao PT, a suas correntes e legendas aliadas à esquerda. Um jogo de cartas marcadas. 

Esta já seria uma razão forte para a Câmara dos Deputados ter revogado o decreto-lei, decisão a ser confirmada pelo Senado. Outro motivo é que a formulação dessa proposta, capaz de tutelar a máquina do Estado por interesses político-ideológicos específicos e conhecidos, tem de ser feita às claras, no Congresso. Não por uma canetada presidencial.