Quando a PwC se recusou a dar uma parecer atestando as demonstrações financeiras da Petrobras referentes ao terceiro trimestre, diante das dúvidas sobre os números apresentados, muitos agentes de mercado se questionaram porque as auditorias - tanto da Petrobras como das empreiteiras - não identificaram previamente os desvios relatados no âmbito da Operação Lava-Jato da Polícia Federal.

Em entrevista ao Valor, o diretor técnico do Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon), Idésio Coelho, explica que o auditor faz testes para checar os controles internos das empresas, mas admite que é raro que identifique casos de corrupção bem arquitetados. "O auditor não analisa e-mail para saber se tem troca de mensagem para acertar preço, não quebra sigilo bancário. Se tiver tudo baseado em contrato, e seguindo o controle interno rigoroso, com aprovação pelos agentes da governança, é muito difícil aparecer", afirma.

Segundo ele, para evitar que o auditor identifique a fraude, é muito comum que os pagamentos ocorram no exterior, em uma empresa do grupo não auditada, ou, quando no Brasil, distribuídos em várias empresas, por vários meses e em valores quebrados.

Ainda de acordo com Coelho, a Securities and Exchange Commission (SEC) não costuma processar o auditor quanto ele não encontra fraude, embora os investidores americanos possam entrar com ações judiciais. Já a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), diz ele, pergunta com mais frequência por que o auditor não viu o malfeito.

Veja abaixo os principais trechos da entrevista:

Valor: Por que é tão raro que um auditor encontre uma fraude, como esses desvios por corrupção?

Idésio Coelho: O auditor sempre analisa o fato depois que ele aconteceu. As normas brasileiras de auditoria, que são iguais às internacionais, definem que o auditor deve considerar a potencial existência de fraude ao fazer seu trabalho, mas que não deve direcioná-lo para isso. O auditor não analisa e-mail para saber se tem troca de mensagem para acertar preço, não quebra sigilo bancário. Se tiver tudo baseado em contrato, e seguindo o controle interno rigoroso, com aprovação pelos agentes da governança, é muito difícil aparecer no trabalho regular de auditoria. Só se alguém delatar mesmo. Só quando é malfeito que aparece.

Valor: Que tipo de teste o auditor faz nessa área?

Coelho: Uma área em que é comum ter risco de fraude é a de reconhecimento de receita. O auditor então examina contratos, manda confirmações externas para que a outra parte diga se comprou, coteja se os preços estão dentro do mercado - quando possível -, vê se tem declínio de preço, se há concentração de venda no fim do período, se no período subsequente as vendas são devolvidas etc.

Valor: Superfaturamento é algo fácil ou difícil de o auditor pegar?

Coelho: Se o bem comprado é uma "commodity" é mais fácil. Se uma revenda de automóvel comprar um carro por quatro vezes o valor, o auditor vai perceber, porque tem cotação no mercado. Mas quando tem um bem que é comprado especialmente para a companhia é difícil de pegar.

Valor: E como o auditor lida com desvios de orçamento?

Coelho: Vamos imaginar que a empresa contratou uma prestadora de serviço para construir uma planta por R$ 1 bilhão e sai por R$ 2 bilhões. Os engenheiros avaliam esses R$ 2 bilhões, explicam o motivo e os agentes de governança da companhia aprovam. O auditor vai analisar a razoabilidade dessa variação e provavelmente não vai conseguir dizer que tem conluio e que tem fraude. Pode ter e pode não ter. Normalmente não tem.

Valor: E um desvio monumental como o de Abreu e Lima?

Coelho: Isso não acontece toda hora. O auditor procura entender o processo, a razoabilidade do estouro do orçamento. Não sei a justificativa nesse caso. Mas deve ter tido alguma. Subiu o preço dos materiais, crise internacional, faltou produto. Tem que ter justificativa razoável para o que auditor se satisfaça. Se tem desconforto, vai falando com agentes de governança, engenheiros, envolve o presidente da companhia, o comitê de auditoria. Porque, acima de tudo, é a gestão que deve estar tranquila.

Valor: Como funciona o controle interno para investimentos?

Coelho: Numa companhia grande, antes de fazer qualquer compra, tem um orçamento plurianual, que é detalhado no nível das obras. E aí se autoriza a gastar dentro de uma metodologia, dizendo que tem que ter preço e qualidade. Não é apenas preço. O processo define então que a empresa precisa chamar três ou cinco competidores para apresentar um orçamento para construir determinada obra. Aí os fornecedores apresentam as qualificações, expectativa de orçamento, estimativa de quando vão entregar a obra, as pessoas que vão ser alocadas, qualificação dos engenheiros etc. Depois que a companhia aprovou determinado fornecedor, tem um processo de acompanhamento da execução, da qualidade e da entrega da obra. Quando termina uma etapa, um engenheiro da companhia vai lá e inspeciona para ver se ela foi feita conforme o contrato e diz, OK, vou pagar. A empresa então empenha o montante e autoriza o fornecedor emitir fatura. Alguém independente checa se o pagamento autorizado está coincidindo com o contrato original e com o orçamento. E depois se registra a transação.

Valor: E o que o auditor faz?

Coelho: O auditor olha se o processo é bem desenhado, documentado e se é executado como determinado pela administração. Quanto mais segregação tiver no processo, mais segurança se tem de que ele está seguindo de acordo com o previsto.

Valor: E quem costuma estar envolvido em fraude?

Coelho: Fraude ocorre em qualquer lugar, até do funcionário que leva a esposa numa viagem de negócios e debita os gastos dela. Mas quando existe uma fraude grande, o número de pessoas envolvidas costuma ser pequeno e da alta administração.

Valor: Se o auditor acha algo suspeito, o que ele tem que fazer?

Coelho: Normalmente ele pede para a administração fazer uma investigação direcionada àquele tema. Se é uma companhia registrada na SEC, é comum a empresa contratar um advogado externo para coordenar a inspeção e outra empresa para fazer auditoria forense [focada em fraude]. Aí então se delimita as áreas de risco maior, olhando primeiro os problemas alegados, e depois se faz um trabalho ao redor para ver se tem outras coisas. E esse trabalho é feito com acompanhamento do auditor externo.

Valor: Faz sentido achar que é mais fácil encontrar o desvio do lado das empreiteiras, que fazem a distribuição dos recursos?

Coelho: Não está certo esse racional. Empreiteiras grandes também tem ativos de dezenas de bilhões. Suponha um contrato de R$ 1 bilhão. Se houver um desvio de 3%, estamos falando de R$ 30 milhões. Pode pegar uma nota suspeita? Pode pegar. Mas as empresas que fazem isso tendem a diluir os pagamentos. Não imagina que vai ter uma nota [falsa] em uma empreiteira de R$ 200 milhões. Para evitar que o auditor identifique, é muito comum que as transações sejam distribuídas em várias empresas - às vezes os pagamentos são feitos por meio de empresas do grupo que não são auditadas no exterior - e distribuídas em vários meses com valores quebrados. Imagina quanta subcontratação uma empreiteira faz para construir uma planta. São centenas de transações e provavelmente o auditor não pega, porque ele trabalha com uma amostra pequena.

Valor: De que tamanho?

Coelho: O auditor busca segurança de 90% de que podem existir erros de no maximo 5%. Por isso se diz que ele faz asseguração razoável [sobre a situação patrimonial da companhia], e não asseguração absoluta. Quando ele checa a validade dos controles internos, é comum que ele teste de 25 a 100 itens de cada ciclo operacional, para milhares de transações. Então ele faz 25 testes na área de compras, mais 25 em folha de pagamento, 30 para ativo fixo, 50 de uma área que tem menos controle, por exemplo. No máximo 100 itens para transações rotineiras. Isso é aceitável, está dentro das normas. O risco de não pegar uma transação específica é enorme. O que o auditor assegura é que o todo da demonstração financeira está razoavelmente bem apresentado.

Valor: Porque você não consegue pegar o pagamento no exterior?

Coelho: Todas as companhias importantes do país têm operação em paraísos fiscais cujas entidades não são auditadas. O auditor não vê o que está acontecendo lá. Não são subsidiárias. Mas às vezes pertencem ao presidente da companhia ou a um filho de um conselheiro. Tem bastante.

Valor: Sempre pareceu que a relação entre empreiteiras e o setor público fosse de risco. Como o auditor lida com isso?

Coelho: Todos os potenciais clientes são investigados antes de serem aceitos. Se aparece muita coisa negativa, normalmente a empresa não é aceita. Mas a simples alegação, sem provas, de que em obras públicas sempre têm desvio não é motivo para não aceitar a companhia.

Valor: Quantos auditores há numa empresa como a Petrobras?

Coelho: Em uma companhia regulada, de capital aberto, não muito pequena, são necessárias cerca de 10 mil horas por ano para realizar o trabalho de auditoria, o que pode incluir até dez auditores, além de outras pessoas fazendo trabalhos pontuais. Já numa empresa do porte de Vale, Petrobras, Itaú, estamos falando de 80 mil horas, 100 mil horas ou 120 mil horas de auditoria. Isso significa que deve ter umas 40 pessoas por ano de forma integral trabalhando na empresa, sendo uns três sócios, cinco ou seis diretores e uns 15 gerentes, sem falar nos especialistas.

Valor: Como os auditores doações para políticos e partidos?

Coelho: Se as doações são legais, como legais são tratadas. Se a lei permite e elas doam, não posso fazer do que é lícito ilícito.

Valor: Em que ocasiões uma firma de auditoria pode ou deve se recusar a assinar o parecer?

Coelho: O relatório de auditoria tem alguns formatos. O mais comum é o relatório sem ressalva, conhecido como "parecer limpo". Depois tem o relatório com ressalva, que normalmente é sobre um ponto específico, quando o auditor diz que, exceto quanto àquele assunto, as demonstrações estão adequadas. Em outros casos há erros tão grandes que o auditor emite um "parecer adverso". É aquele em que o auditor diz que a demonstrações financeiras não representam a posição patrimonial. E tem ainda a "abstenção de opinião", quando tem um assunto tão grande ou tão importante em curso, que ele não consegue prever o desfecho. Então o auditor diz que não está dando sua opinião sobre aquele balanço. Isso também é um relatório.

Valor: E quando não há parecer?

Coelho: É muito incomum não emitir mesmo. É mais comum o auditor não dar opinião, mas emitir o relatório. Ou dar o parecer adverso. Agora não dar o relatório é incomum, ainda que tenha o mesmo efeito que a abstenção de opinião.

Valor: Mas não ter nenhum relatório impede o arquivamento do balanço na CVM, por exemplo.

Coelho: O que acaba acontecendo nesses casos é o auditor emitir o relatório com abstenção de opinião ou com algum tipo de ressalva. E quando completa o processo substitui o relatório por um novo. É claro que a empresa vai querer o melhor relatório possível sempre. Mas se a investigação dura muito tempo, não ter nenhum relatório é pior. Porque aí ninguém sabe de nada.

Valor: A SEC concorda com a visão de que o auditor não é responsável por identificar fraude?

Coelho: Normalmente a SEC não processa auditores por isso. Ela culpa a administração. O que às vezes ocorre é que investidores nos EUA abrem processo contra a administração e podem incluir o auditor. O americano coloca todo mundo para tentar tirar o máximo possível de mais bolsos.

Valor: E a CVM?

Coelho: A CVM tem o costume de perguntar ao auditor porque ele não viu. Pede papéis de trabalho, às vezes ouve o sócio. As firmas de auditoria acabam fazendo termo de compromisso, sem confessar culpa. O auditor normalmente não participa da fraude. Mas é claro que, se ele participou, precisa ser apenado.