Perseguido e cassado pela ditadura militar, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) prestou depoimento de uma hora à Comissão Nacional da Verdade, nessa quarta-feira, em seu apartamento em São Paulo. Fernando Henrique contou os depoimentos que prestou nas unidades militares, o encontro com o ex-ministro Golbery do Couto e Silva no qual denunciou as torturas contra seus colegas, de sua aposentadoria precoce na USP por conta da perseguição política e a intimação do Doi-Codi. O ex-presidente reconheceu que o que ocorreu com ele naquele período não foi nada perto do que outros passaram. Ao falar de seu período no exílio, no exterior, disse que o caviar servido é amargo.

Na entrevista, estavam presentes dois integrantes da comissão: o ex-ministro da Justiça de seu governo, José Carlos Dias, e o Paulo Sérgio Pinheiro, que foi secretário de Direitos Humanos na gestão tucana. O advogado Luiz Francisco Carvalho, que presidiu a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, também esteve presente.

Confira abaixo trechos do depoimento do ex-presidente:

Comício da Central

No dia 13 de março de 1964, FH conta que pegou um trem do Rio para São Paulo e viu a movimentação na Central do Brasil:

“Eu vim pra São Paulo, e como fazia naquela ocasião, vim de trem. Então, tinha que ir à Central. Passei pela Central. Vi o comício. Quando eu sai da casa do meu pai, me assustei porque havia muitas velas acesas nas janelas dos apartamentos de Copacabana, de protesto contra o comício. Era um ambiente assim. Eu tomei o trem e no trem víamos, por coincidência, o Zé Gregório, o Plínio de Arruda Sampaio e o Marco Antônio Mastrobuono, que veio a se casar com a filha do Jânio depois”

Prisão decretada

FH diz que os motivos que levaram a sua prisão em 64 foram “ridículos”:

“Começou a fase dos inquéritos militares. Nessa fase veio as acusações, eu nunca li direito essas coisas todas, mas o fato é que decretaram a minha prisão. Havia várias alegações, algumas bastante ridículas. Uma é de que eu havia sido, e fui, tesoureiro do Centro de Estudos do Petróleo, que era a favor da Petrobras, para criar a Petrobras. Meu pai era presidente desse centro aqui em São Paulo. E isso naquela época era subversão. Segundo, eu era muito amigo do Darcy Ribeiro. Enfim, tinha uma porção de elementos fantasiosos que te transformavam numa pessoa perigosa.”

Casa de amigos

Antes de partir para o Chile, onde ficou exilado até 67, FH teve que se esconder na casa de amigos e passar pela Argentina:

“Tentei ficar aqui na casa de amigos em São Paulo, mas era muito difícil o clima. O Maurício Segall, que era muito amigo meu, não sabia. A essa altura o Maurício não tinha ligações que viria a ter mais tarde com o Mariguela. Mas o Maurício sempre foi muito efetivo como organizador. Ele organizava as fugas e chegaram a conclusão que era melhor eu ir embora. Mas com a ilusão de que ia escrever a tese e voltava, para ter paz, para fazer o trabalho. E o Maurício arranjou a possibilidade de eu sair por Viracopos, porque não havia meu nome na lista, qualquer coisa assim. E fizeram uma operação e fui embora para a Argentina.”

Caviar amargo

Sobre o período em que passou exilado no Chile e na França, o ex-presidente afirmou que foi uma fase de muita expectativa:

“Eu até dizia de brincadeira: estão servindo caviar, mas é amargo. Em que sentido isso é amargo? Você vive a maior parte do tempo imaginando o que está acontecendo no país seu. Romantizando, vendo chances, oportunidades, que não se concretizam, raramente se concretizam, e na expectativa de que tudo vai mudar.”

AI-5

De volta ao Brasil, em outubro de 68, FH foi aprovado no concurso para a cátedra de sociologia da USP, mas viu as liberdades ameaçadas pelo AI – 5:

“Eu ganhei a cátedra em outubro. Em dezembro, vem o AI-5. Eu estava em casa, liguei o rádio, ouvi o Gaminha, como nós os chamávamos, lendo como se fosse um grande algoz, e o AI-5 era um fechamento completo. Bom, isso aí vai mal. Quando um dia eu estou indo para a faculdade de carro e ouço no rádio que tinham me cassado, perdido a cátedra, compulsoriamente, não sei o quê. Eu, o Florestan, Octavio Ianni e muitos outros. Na verdade, todos aqueles que a universidade tinha acusado lá atrás de novo foram cassados.”

Jovem aposentado

Impedido de dar aulas, FH foi compulsoriamente aposentado aos 37 anos:

“No dia que eu fui à USP para receber os proventos de aposentado, na reitoria, cheguei no guichê a senhora que estava lá me disse: 'mas já morreu'. Eu: 'não, não morri não. Eu tô aqui'. Porque tinha morrido Fernando Henrique de Almeida, da Faculdade de Direito. Ela foi lá e me deu o cheque: 'como é que conseguiu tão moço se aposentar?' Para ela, aquilo era uma vantagem. Não é tão fácil assim, né?”

Cebrap

Para não voltar ao exterior novamente, FH decidiu criar o Centro Brasileiro de Análise de Planejamento (Cebrap):

“As cosias pioraram muito depois do AI-5 e a suspeita de que o Cebrap era braço de uma organização civil subversiva foi permanente. Numa certa altura, nós começamos a nos aproximar muito de D. Paulo Evaristo Arns, que vinha muito aqui em Higienópolis. E eu fiz muita conferência, convento, essa coisa toda, para as franciscanas, para eles, pessoal do Ipiranga, lá nos conventos, era muito debate, era obsessão pelo nascimento da sociedade civil.”

Carta a Geisel

“E ia ver muito debate sobre orientação do Brasil, o que fazer, o que não fazer. Numa dessas rodadas que meteram a gente na cadeia, ainda no Dops, eu levei, eu creio que o Chico (de Oliveira) foi comigo, não sei se o Vinícius (Caldeira Brant)ou se foi o Régis, à casa do Severo. Severo era ministro, morava aqui nas Perdizes, em frente à PUC. E disse: “Olha, Severo, olha o que está acontecendo no seu governo”. E naquela época, eles sabiam quem tinha torturado e tal, e o Severo me disse: “Você me escreve uma carta ao Geisel?”. Eu disse: “Eu escrevo”. E eu escrevi uma carta ao Geisel denunciando. E dei ao Severo. Depois, dei ao Severo. Passou um tempo, o Severo disse que o Geisel leu e perguntou: “E este daí também não é comunista?”. “Era eu. Então não aconteceu nada. E sabia o nome do delegado, e tudo isso”. Eu não conhecia Geisel e coisa nenhuma.”

Primeiro programa para o MDB

“Eu escrevia, e quando eu escrevia um artigo para o “Opinião”, dizendo mais ou menos o seguinte: “Tá na hora dos jovens, dos intelectuais, da oposição, ao invés de ficar sonhando com a luta armada em casa, ir para a luta real. A luta real é o MDB, que estava começando a se organizar”. Eu dizia: “É preciso não ficar nessa obsessão, e tal”, alguma coisa desse tipo. O Ulysses leu, ou alguém leu por ele, o João Pacheco, certamente, foi com ele, os dois vieram ao Cebrap conversar comigo. Disseram: “Lemos isso aqui, queríamos encomendar ao Cebrap uma espécie de programa de campanha para o MDB”. Ia vir a campanha de 74. Eu disse: “Aqui é o seguinte: isso aqui é um centro de pesquisa, nós não estamos… eu não posso engajar o centro em uma coisa que é de um partido. Eu posso perguntar às pessoas se alguém quer cooperar”. E assim foi feito. E basicamente o Chico, o Refor, a Maria Hermínia Tavares de Almeida, o Bolívar, e eu, posso ter esquecido de alguém, fizemos um programa para a campanha do PMDB, um livrinho vermelho. E aí fomos a Brasília, o Refor e eu. Seguramente eu e o Refor fomos, não me lembro se o Chico foi. A casa, eu creio que do Amaral Peixoto. E para nós, eram uns dinossauros, as pessoas que nós íamos encontrar lá. O programa era interessante, porque ele é matriz de todos os programas que vieram depois. E ele era muito simples. Era a incorporação dos temas sociais à vida política. E sociais e econômicos. Distribuição de renda, reforma agrária, igualdade racial, questão indígena, tudo o que depois passou a ser falado está nesse programa do PMDB. Um programa digamos social democrático. E nós achávamos que ele ia ser recusado porque nós fomos falar com o núcleo do conservadorismo do PSD antigo. Tancredo, Montoro passou rápido, Montoro sempre passou rápido, ele não ficava muito tempo. Montoro não era percebido como tal. Era mais progressista, digamos. Os outros não. E eles não sei se leram ou não leram, todos aprovaram o tal do programa. E não foi por causa do programa, mas nesse ano o MDB ganhou, estouradamente. Nós modernizamos a linguagem. O Bolívar e eu treinamos o Quércia, para o Quércia falar, o Quércia ser candidato ao Senado. Eu não sabia quem era Quércia, àquela altura dos acontecimentos. E foi uma certa virada.”

Nova rodada de perseguições

“Passamos a ter um pouco mais de proximidade com a vida política institucional. Passamos a ter um pouco mais de atividade institucional. A despeito, ou talvez até por isso, creio que era Geisel, houve uma nova rodada de perseguições. Houve várias. Numa, foi a questão que nós fizemos uma revista chamada “Argumento”. E foi feita pelo Antonio Cândido, pelo Paulo Emílio, pelo Fernando Gasparian, por mim, e secretariado pela Maria Hermínia Tavares de Almeida. Essa revista, naquela época tudo tinha outro significado. A revista era uma revista cultural, mas que vendeu muito. Vendeu 40 mil uma vez. Aí veio a notícia, veio a censura que iam proibir. Então pela primeira vez eu usei algum instrumento familiar para ver o que dava para fazer. Eu fui com o Antonio Candido, não tenho certeza se o Paulo Emílio foi, o Antonio Candido eu tenho certeza, ao Rio, para procurar o marechal Cordeiro de Farias, que era muito amigo do Geisel. O Cordeiro de Farias, por causa da minha família, muito negócio de militar, ele era muito ligado ao meu avô. Ele é de outra geração mais moça, mas ele tinha muita admiração pelo meu avô, tinha muito relacionamento com minhas tias. Chegamos lá, o Cordeiro disse “Não, o que eu aprendi eu aprendi com o seu avô”. E nós perguntamos ao marechal: “Está havendo esse negócio, está insuportável e tal”. Ele mostrou, puxou da gaveta, uma coisa informando que ele também estava sob censura. E disse: “Eu vou falar com o Ernesto, eu vou falar com o Ernesto, isso não vai continuar assim, eu vou falar com o Ernesto e tal”. De fato, falou com o Ernesto. Eu sei que um dia eu estava lá no Cebrap, me telefona uma senhora famosa que era secretária do Golbery, esqueço o nome dela agora. Que o general Golbery dava uma entrevista para mim, dia tal em Brasília.”

Reunião com Golbery no Planalto

“Bom, eu tinha estado no Palácio do Planalto antes disso só uma vez quando o Jânio era presidente e me convidou, queria que eu fosse para o Conselho de Economia e não fui. O José Aparecido e não sei o que. Essa foi a segunda vez que eu entrei lá naquele palácio. Bem, entrei e fiquei esperando o Golbery. Um tempo enorme, ele estava com o Geisel. E fui para a sala do Golbery, sozinho. Fui sozinho, contei os episódios. Nesse meio tempo, várias pessoas do Cebrap e outros já tinham ido para a OBA, e eu sabia. Eu tinha que interferir , depois eu conto. E o Golbery começou assim: “Mas isso não pode continuar, isso é uma coisa de maus brasileiros, maus patriotas, não sei o que”. Eu disse: “Olha, general, o senhor me desculpe mas isso aí não é assim não. Porque eu estive lá”. Já tinha estado na OBA. E eu fui lá, eu vi gente, eu não fui torturado, mas eu vi gente torturada.

E o Golbery: “Isso vai ser resolvido, isso vai ser resolvido”. Eu acho que o Golbery era sincero. Acho que eles estavam perdendo o controle da repressão. E ele disse: “Vocês vão procurar o Falcão”. Aí eu fui com o Antonio Candido, ter um encontro mais tarde, que o Falcão encomendou, e foi péssimo. O Falcão era de uma agressividade enorme, e nos recebeu muito mal.”

Estou no Brasil porque tenho amor ao país

“Eu me lembro que a Conceição Tavares tinha vindo do Chile e puseram ela nua. E eu disse: “Aí, olha”. E eu fui reclamar no Exército, com o Jair Brandão Lopes, aqui, no 2º Exército. E o negócio é o seguinte, quando tem experiência com a classe dominante é mais fácil, não é? Você entra, eu entrei, fui até o gabinete do coronel, que era o responsável pela Oban. Esqueci o nome dele. Eu fui duas vezes. E são coisas curiosas. Eu sei que num dado momento, quando ele, o general, me disse: “Mas vocês não são patriotas, isso é coisa de maus brasileiros”. Eu fiquei irritado. Eu sou calmo geralmente, mas em certos momentos a gente se irrita. Eu dei um murro e falei: “Olha, o senhor não me diga isso. Eu poderia estar em qualquer lugar do mundo dando aula, muito bem pago e muito à vontade, e estou aqui no Brasil porque eu tenho amor pelo país”. E inverti a relação com ele. Depois eu liberei uma pessoa pelo telefone, com esse coronel.”

Interrogatório no Doi-Codi

“Quando nós fomos para a intimação, eu creio que eles não tinham mãos livres sobre nós. Não posso garantir, mas eu creio que não tinham mãos livres. Porque já era uma fase de Geisel. Mesmo assim, eles tiraram uma fotografia, como se fôssemos criminosos, me puseram um capuz na cabeça quando eu entrei lá e passei 24 horas lá. E foi uma loucura comigo. No interrogatório lá, que não terminava, primeiro eu não entendia, porque eles viam com coisa sobre líderes trotskistas, uruguaios e argentinos. Eu não tinha a menor ideia.”

FH reconheceu que sofreu pouco durante a ditadura em comparação com outras pessoas

“Mas comparando o que passou comigo não é nada com o que aconteceu com milhares de pessoas. Hoje, todo mundo virou democrata, naquela época era muito difícil. Qualquer gesto era um gesto arriscado e de coragem.”