O tenente-coronel Paulo Malhães, um dos responsáveis pela “Operação Gringo” - deflagrada em parceria com a Argentina para perseguir e caçar refugiados no Brasil, principalmente os militantes da guerrilha montonera -, cumpriu, entre 1976 e 1980, 14 missões secretas no Sul do país. Uma delas, no dia 15 de março de 1980, ocorreu três dias depois do desaparecimento do casal Horacio Campiglia e Mónica Binstock, capturado no Aeroporto Internacional do Galeão quando desembarcava com os nomes falsos de “Jorge Piñero” e “Maria Cristina Aguirre de Prinssot”, para lançar uma contraofensiva da guerrilha com o objetivo de derrubar o governo militar argentino.

 

A captura do casal, levado a bordo de um cargueiro C-130 para um campo de concentração em Buenos Aires, foi parte de uma operação militar que resultou na queda de pelo menos outros 12 guerrilheiros.

Na última das três viagens ao Sul no primeiro semestre do ano, o coronel Malhães esteve na região de 15 de março a 20 de abril, período da maioria das capturas. As viagens secretas de Malhães, que aparecem nas “Folhas de Alterações” do oficial (nome dado ao histórico individual dos integrantes das Forças Armadas), reforçam as suspeitas sobre o envolvimento direto do governo brasileiro na morte e no desaparecimento de argentinos no Brasil.

Como O GLOBO revelou em série iniciada ontem, o grupo “Justiça de Transição”, criado pelo Ministério Público Federal para investigar os crimes do regime militar brasileiro (1964-1985), encontrou no sítio de Malhães dois volumes denominados “Operação Gringo”, que mostram o monitoramento de estrangeiros no Brasil.

- Esses documentos servem claramente para revelar o conluio existente entre os aparelhos repressivos brasileiro e argentino, que, de forma sempre clandestina e ilegal, vitimaram não só argentinos, mas também chilenos e uruguaios - afirma o gaúcho Jair Krischke, fundador da organização Movimento de Justiça e Direitos Humanos.

Os brasileiros seguiram os passos dos exilados argentinos no Brasil por acreditar que cidades como Rio, São Paulo e Foz de Iguaçu serviriam de base para o levante montonero, incluindo o contrabando de armas para Buenos Aires. Um dos relatórios da “Gringo”, datado de 31 de dezembro de 1979, cita Horacio Campiglia, identificado como “Petrus, secretário militar”, como um dos membros da direção nacional montonera, tendo morado no Rio entre 1977 e 1978.

SÃO PAULO SERIA A BASE DOS SUBVERSIVOS

Para os agentes brasileiros, São Paulo seria a “base de falsificação de documentos e o setor de desenho e planejamento logístico pesado da Secretaria Militar” montonera. De acordo com o dossiê, “investigações e ações realizadas na Argentina permitiram saber que, através das fronteiras brasileiro-argentinas, entraram armas modernas e explosivos apreendidos em Buenos Aires”.

O CIE desconfiava que o líder montonero Mario Firmenich, do México, teria recrutado um grupo de jovens também exilados, que tinham sido treinados em países como Líbia e Cuba, para formar as TEIs (Tropas Especiais de Infantaria) e TEAs (Tropas Especiais de Agitação), braços operacionais da guerrilha. De volta aos países do Mercosul, sua missão seria reingressar em território argentino para derrubar o governo.

Para neutralizar o ataque, o Batalhão de Inteligência 601, centro militar de interrogatórios e torturas localizado nos arredores de Buenos Aires, pediu socorro aos agentes brasileiros e usou um infiltrado para desmantelar a operação. O CIE teria autorizado, inclusive, o ingresso de um comando argentino para a captura do casal Campiglia/Binstock no aeroporto. A queda do casal é parte do massacre à contraofensiva. Parte foi presa na fronteira, mas alguns conseguiram chegar a Buenos Aires, sendo detidos nas rodoviárias, em falsa operação de combate às drogas.

Em depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), em fevereiro deste ano, dois meses antes de ser assassinado, Malhães admitiu ações conjuntas com os argentinos. Disse que, ao ensiná-los técnicas de inteligência — como a montagem de um organograma das organizações, chamada no jargão da arapongagem de “aranha” —, contribuiu para que a ditadura argentina desmantelasse as organizações guerrilheiras.

- Ensinei a aranhazinha para eles. Eles acabaram com os montoneros, acabaram com a ERP (Exército Revolucionário do Povo), acabaram com tudo - contou à CEV.


 

Em 5 de agosto de 1979, Hugo Guangiroli, liderança afastada dos montoneros e refugiado no Brasil, recebeu em sua casa, no Rio, uma notícia que o abateu completamente. Sua filha, Lía Marianna Guangiroli, com apenas 23 anos, não era considerada mais viva pelos montoneros. Mãe de uma menina, Victoria, de 3 anos, Lía provavelmente caíra nas mãos dos militares ao entrar na Argentina para a contraofensiva contra a ditadura. Victoria se tornara órfã, e coube a Hugo, sozinho, reaver sua neta e superar mais uma violência da repressão contra sua família.

A primeira delas foi no ano de 1976. Raul Passaro, marido de Lía Marianna e pai de Victoria, morreu em uma ação do grupo. A partir disso, Hugo, que se tornara uma liderança política do movimento desde 1973, decidiu abandonar o movimento e se refugiar no Brasil.

- Passei a viver minha vida no Brasil. Ministrei cursos de Psicanálise na PUC do Rio. Foi até por meio de uma aluna, que era filha de um general do SNI, que consegui residência permanente - conta Hugo.

Porém, o argentino vivia uma liberdade vigiada. O psicanalista era um dos monitorados pela “Operação Gringo”. Teve seus antecedentes subversivos passados ao Brasil pelo governo argentino e chegou a ser indicado como o líder dos montoneros no ambiente universitário.

Em 1979, sua filha, por meio de cartas, pede para que o pai a encontre em Madri. Na Espanha, a filha afirma que se casará de novo, com o amigo de infância e montonero Julio César Genoud.

- Na ocasião, minha filha me avisou que participaria da contraofensiva. Perguntei se poderia ficar com minha neta, mas ela me falou que os montoneros consideravam o Brasil um país inimigo - lembra Hugo.

Victoria foi levada para um abrigo em Cuba. Já Marianna foi morta após o desmantelamento da contraofensiva. Na carta recebida por Hugo, os montoneros dizem que, se o avô quisesse ter notícias de sua neta, deveria responder à correspondência. Hugo respondeu no mesmo dia e foi informado, três dias depois, de que Rodolfo Puiggrós, que era o secretário geral dos montoneros, estava com a criança no México. O psicanalista avisou aos pacientes que faria uma visita curta de dez dias. A viagem durou três meses. Victoria não estava com Puiggrós e continuava em Cuba. Os montoneros continuaram mostrando resistência a Hugo:

- No final, dei 48 horas para que me entregassem minha neta ou denunciaria o grupo à ONU por sequestro.

Em menos tempo, ela já se encontrava de novo com o avô, com quem moraria até resolver estudar na Argentina. Aos 38 anos, Victoria vive hoje em Córdoba, mas fala com o avô todos os dias para mandar fotos de seu filho, Tao Guangiroli.