O impacto da morte do líder bolivariano Hugo Chávez, em março de 2013, é cada vez mais evidente e profundo no tabuleiro político venezuelano. Fosse um jogo de xadrez, diria-se que, na falta do rei, cada vez mais bispos buscam armar sua própria estratégia de poder. Com uma oposição que parece adormecida, a principal ameaça ao governo do presidente Nicolás Maduro são os setores críticos dentro do próprio chavismo, nas alas civil e militar. Prova disso foi um recente seminário organizado pelo movimento chavista Maré Socialista, no qual seus integrantes alertaram sobre "os problemas e desvios do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV)" e apresentaram "propostas de governo para superar a crise". Uma horda de chavistas insatisfeitos já se transforma em maioria.
- Somos uma expressão de descontentamento, como foi Chávez quando surgiu. Nosso país sofre uma crise de liderança - disse ao GLOBO o analista político e membro do Maré Socialista Nicmen Evans. - Nos acusam de traidores, mas nossa única intenção é gerar espaços para o debate e a discussão.
Um apagão ocorrido durante o seminário indicava sabotagens contra o grupo que vem denunciando a corrupção e o saque nos últimos anos por conta da cúpula política e empresarial do país. O Maré Socialista tem militantes em toda a Venezuela, já pensa em disputar as eleições legislativas de 2015 fora do PSUV e exige uma auditoria pública para determinar "quem estafou o país".
Evans e seus colegas são chavistas, defendem o legado de Chávez e a revolução, mas não se sentem identificados com Maduro. Por enquanto, decidiram lutar dentro do chavismo para acabar com o que chamam de intolerância, ausência de diálogo, debate, crítica e autocrítica. Para eles, a revolução bolivariana está numa encruzilhada.
- Pedimos o retorno da democracia participativa e a retificação de políticas econômicas. Quem vai pagar esta crise? O bolso do povo ou os responsáveis pelo colapso? - indagou Evans.
Críticas de civis e das forças armadas
A gravíssima crise econômica aprofundou as divisões entre os chavistas. Falta tudo na Venezuela: alimentos, medicamentos, produtos de limpeza, entre muitas outras coisas. A dramática escassez e a disparada da inflação, uma das mais altas do mundo, poderiam provocar uma crise social delicadíssima, alegam especialistas. Alguns especulam sobre um novo "Caracazo", o levante social de 1989, que provocou centenas de mortes e, para muitos historiadores, é a origem do chavismo.
A política econômica de Maduro já foi criticada publicamente por altas figuras do chavismo, como o ex-ministro da Planificação Jorge Giordani, o ex-ministro da Educação Héctor Navarro, e a vice-presidente do Parlamento Latino-americano na Venezuela, Ana Elisa Osorio - todos pessoas de confiança do falecido líder bolivariano. E vários participaram do recente seminário do Maré Socialista.
- São pessoas que questionam a lealdade de Maduro com o legado original de Chávez. As dissidências dentro do chavismo são hoje a principal ameaça para o governo - assegurou a jornalista Argelia Rios. - Uma coisa é herdar a Presidência e outra bem diferente é herdar o processo revolucionário.
A atitude crítica dos chavistas irrita profundamente o presidente, que os acusa de serem desleais e indisciplinados. O presidente enfrenta, ainda, resistências nas Forças Armadas. Seu adversário mais importante é o presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, que, na opinião de Argelia, nunca aceitou a escolha de Maduro como sucessor.
- Cabello perdeu porque Chávez seguiu os conselhos de Cuba, que sempre preferiu um sucessor civil e não militar - explicou a jornalista.
Em outubro passado, o presidente destituiu o ministro das Relações Interiores, o general reformado Miguel Rodríguez Torres, acusado de ser o responsável pelas mortes ocorridas nas manifestações de fevereiro passado. Rodríguez Torres claramente não tinha a mesma agenda militar que Maduro, e sua saída foi comemorada por civis de peso dentro do chavismo, como o ex-vice-presidente José Vicente Rangel, um importante e discreto assessor de Maduro. O ex-ministro foi substituído pela almirante Carmen Meléndez, mais alinhada ao Executivo.
- As dissidências existem dentro do chavismo, o que não sabemos é o tamanho deste fenômeno. Ainda não vejo um problema grave, mas o governo deve estar atento - apontou o jornalista Vladimir Villegas, irmão de Ernesto Villegas, ex-ministro de Comunicação do governo
Rumores de eleição antecipada
Para Leopoldo Puchi, ex-deputado chavista e analista político, a insatisfação ainda vem de grupos minoritários no bloco governista:
- Os partidos se racham quando racha-se a cúpula, e isso ainda não aconteceu. O que existem são fugas e dissidências no PSUV.
Para Puchi, Chávez foi substituído por uma equipe coletiva de trabalho, de sete ou dez dirigentes, cuja figura principal é o presidente.
- Existe um grupo que governa, e a figura central é Maduro. No caso de Chávez, ele era o líder absoluto - analisou Puchi.
Com este cenário de disputas internas que só devem se acentuar diante do agravamento da crise econômica, já se especula sobre a antecipação das eleições legislativas, previstas para o terceiro trimestre de 2015. Dentro e fora do governo, a sensação é de que Maduro terá sérias dificuldades para governar mais um ano sem uma vitória nas urnas.
Maduro investe mais de meio bilhão de dólares em jornais e rádios estatais
Em 2015, o governo do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, pretende destinar cerca de US$ 508 milhões a meios de comunicação estatais e comunitários, alinhados com as políticas da revolução bolivariana, segundo dados divulgados pelo professor Marcelino Bisbal, diretor de Estudos de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Católica Andrés Bello. De acordo com o cálculo, baseado no orçamento para o ano que vem, apresentado recentemente pelo Palácio Miraflores, os recursos a serem injetados na mídia bolivariana chegam a superar até o montante que o governo prevê gastar nos poderes Judiciário e Eleitoral.
Para alcançar sua meta, Maduro pretende aprovar um projeto de lei que permitirá ao governo financiar de forma direta mais de 500 emissoras de rádio comunitárias claramente identificadas com a revolução. Em outra empreitada, chegou às bancas ontem a primeira edição do “CuatroF”, um novo jornal chavista.
O projeto de Comunicação Popular foi rechaçado pelo Colégio Nacional de Jornalistas (CNP, na sigla em espanhol). O órgão considerou a manobra um instrumento jurídico que não beneficia as classes populares — mas que, pelo contrário, busca controlá-las e, assim, limitar a liberdade de expressão e silenciar a crítica”. Segundo o presidente do CNP, Tinedo Guía, o projeto de Maduro busca formar, controlar e promover meios comunitários.
— Desta maneira, o governo busca ampliar sua base de propaganda, controlar os meios comunitários e garantir que tudo o que se diga esteja em linha com o que é determinado pelo Executivo Nacional. Ou seja, silenciar qualquer opinião ou dissidência — afirmou.
Atualmente, de acordo com o monitoramento realizado por Bisbal, o governo venezuelano controla 14 canais de TV, o canal por satélite Telesur, quatro jornais e dezenas de emissoras de rádio.
— Analisamos todos os recursos do Orçamento destinados à comunicação e, claramente, a maior parte do dinheiro será injetado no Ministério de Informação e Comunicação — explicou.
A estratégia de Maduro é clara: ampliar a divulgação de informações favoráveis a seu governo num ano em que os venezuelanos deverão renovar os membros da Assembleia Nacional (AN). Com o país mergulhado numa gravíssima crise econômica, e Maduro às voltas com divisões dentro do próprio chavismo, o governo precisa redobrar esforços para obter um bom resultado nas urnas.