Dias depois que Kaizer Dour morreu em consequência do Ebola, às margens de um mangue, estranhos levaram seu corpo putrefato em uma canoa para enterrá-lo em um lugar secreto. O local do enterro foi em uma ilha desabitada, coberta de arbustos, longe da quadra de basquete nacional onde Kaizer foi aclamado como um dos mais valorosos jogadores da Libéria na última temporada. Os estranhos cumpriram um dos mais importantes deveres de uma família liberiana: enterraram o jovem.

Um dos homens de pé até os joelhos em uma vala rasa, jogou areia sobre o corpo, medindo 1,85, do rapaz. O outro, tomando um trago de um gin local chamado Manpower, proferiu um discurso de despedida do jovem, na falta dos familiares. "Ninguém da sua família está aqui para representá-lo", disse o homem, que foi filmado pela câmara de um celular. "Sua mãe deu uma rosa que deveríamos enterrar com você como lembrança dela. Ela fez o máximo que pôde, mas estava sozinha."

O enterro, de uma das incontáveis mortes não registradas nesta que é a mais letal epidemia de Ebola da história, foi o fim no anonimato de um jovem da classe média prestes a se tornar uma celebridade. Uma estrela em ascensão da liga de basquete da Libéria, Kaizer Dour, de 22 anos, sonhava em jogar um dia no Los Angeles Lakers, time do seu ídolo e ala-armador Kobe Bryant. Seu perfil no Facebook, atualizado três semanas antes da sua morte, em 9 de agosto, ele aparece girando uma bola de basquete e a luz do teto iluminando seu rosto de jovem seguro de si mesmo.

Um enterro digno com certeza teria atraído centenas de pessoas: companheiros de equipe, amigos, fãs e membros da sua enorme família, para quem ele era um motivo de orgulho. Mas esta estranha e terrível doença chamada Ebola, nova nesta parte da África, já começara a dilacerar uma família bastante unida, trazendo medo, ira e no final a morte daqueles que o amavam.

O Ebola é uma doença familiar, e os liberianos são lembrados continuamente disto nos sermões dos domingos. Quanto mais as famílias se unem para combater a doença, mais elas se desintegram.

A enorme família de Kaiser sobreviveu a 14 anos de guerra civil na Libéria, tornou-se mais forte na luta contra a pobreza, contra dirigentes gananciosos e governos indiferentes. Assim, quando Kaizer adoeceu, sua mãe, Mamie Doryen, agiu como sempre, recorreu à família para cuidarem do filho doente.

Kaizer, que foi infectado pelo pai, logo passou o vírus para duas tias. Ao todo, sete membros de três gerações morreram em uma rápida sucessão. Sua mãe, uma figura dominante do clã familiar, sobreviveu. Mas ao ser responsabilizada pela calamidade que se verificou, ela se escondeu, uma pária no momento de maior necessidade da sua família, que não conseguiu manter-se em pé.

"O Ebola é como uma bomba", disse um dos tios de Kaizer.

Esta destruição de famílias é a grande tragédia provocada pela epidemia. Em um continente onde muitos Estados são frágeis, até agora a família ainda é a instituição mais importante na África. E isto é especialmente verdade em países assolados pela doença - Libéria, Serra Leoa e Guiné - três entre os mais frágeis e pobres da África. Os efeitos do Ebola na região, corroendo as reais instituições que mantêm unida a sociedade, podem ser de longo prazo e de longo alcance.

Mesmo hoje, com a ajuda dos Estados Unidos e outros países aumentando, muitas vítimas ainda são tratadas dentro de casa, lugar de socorro e fonte de contágio. "Eles estavam juntos, era uma família forte, mas o Ebola esfacelou o clã inteiro", afirmou o reverendo James Narmah, ministro pentecostal que conhece a família de Kaizer. "É o que vem ocorrendo hoje. O Ebola tem provocado muitas divisões, muito ódio, no âmbito das famílias e das comunidades, por toda a parte."

Batalhas. Os avós paternos de Kaizer, Joseph e Martha Doryen, tinham cinco filhos e cinco filhas. Todos sobreviveram à guerra civil da Libéria de 1989 a 2003, uma guerra brutal até mesmo pelos padrões das guerras vividas pela África.

Antes do início dos combates, quando rebeldes tentaram derrubar a ditadura militar, Joseph Doryen trabalhava como motorista no Ministério da Agricultura e, depois, como chofer de um rico empresário da Guiné. Como o empresário fugiu da guerra, Joseph Doryen começou a plantar batatas verdes em Capitol Hill, um arrabalde de Monróvia. As crianças ajudavam e sua mulher vendia o produto em um mercado local.

Até a morte de Joseph Doryen, há três anos, o casal sempre era visto passeando juntos ou sentados sob uma mangueira atrás da casa. Os dez filhos eram todos "do mesmo pai e da mesma mãe", uma raridade em uma grande família dessa geração.

Como seu modelo americano em Washington, Capitol Hill em Monróvia tem esse nome em homenagem ao Capitol Building, um dos muitos vínculos existentes entre Estados Unidos e a Libéria, país fundado por escravos livres americanos em 1822. Mas o fato de estar próxima da sede do governo da Libéria tornou o bairro um alvo frequente. Mas nem mesmo a guerra foi tão terrível quanto o Ebola, disse a família.

"Mesmo quando vivíamos em guerra, conhecíamos algum lugar seguro para ir", disse Anthony Doryen, 39 anos, o segundo filho mais velho. "Desta vez você nem sabe para onde ir. O Ebola é uma doença que destrói famílias. A doença o torna medroso porque, quando está junto com a família, aparentemente está em contato com a doença. Isto faz com que você se afaste dela."

Hoje, ruelas sujas de Capitol Hill serpenteiam em torno das casas com tetos ondulados seguros por grandes pedras pesadas. A leste, o Templo da Justiça se destaca acima das palmeiras. A Mansão Executiva do presidente está próxima dali, mais ao sul. A bandeira liberiana nos prédios do governo - vermelha com listras brancas e uma estrela branca em um quadrado azul - pode ser confundida com a bandeira americana.

Para a família Doryen, a Libéria do pós-guerra melhorou sua vida. Como muitos moradores, os Doryen ainda tiram água de poços velhos e insalubres. Mas, como eram proprietários em Capitol Hill, tinham uma melhor situação financeira do que muitos outros, com empregos estáveis em postos de gasolina, serventes nas cafeterias do governo, vendendo cartões para celulares e comerciantes.

Como nos tempos de guerra, a família continuou unida durante o período de paz. Os filhos construíram casas separadas próximas da dos pais e derrubaram a velha e frágil casa da família, juntando as economias para construir uma habitação de concreto com oito quartos, que oferecia estabilidade, coesão - e um refúgio para o enfermo Kaizer.

Linha de frente. Para muitos africanos infectados durante esta epidemia, o vírus foi transmitido silenciosamente, por meio de ternos gestos de amor e carinho, em casa onde o doente era tratado ou em um funeral onde o morto era velado.

Mas para o pai de Kaizer, Edwin Dour, o Ebola chegou violentamente na noite de 25 de junho, depois que um homem gravemente doente - o primeiro caso para a família Doryen - foi levado para a atormentada clínica do governo onde o pai de Kaizer era o administrador chefe.

Seis dos 29 funcionários da clínica morreram dentro de um mês. O pai de Kaizer, conhecido por jamais dispensar os pacientes, foi infectado também e transmitiu o vírus para o filho. E os doentes levaram o vírus para centros de saúde desprotegidos que, por seu lado, ajudaram a propagar a doença.

Não obstante os recursos financeiros que Estados Unidos e outros governos enviaram para o sistema de saúde da Libéria, os centros médicos rapidamente entraram em colapso. A jovem de 16 anos que foi levada com a doença de Serra Leoa para Monróvia morreu no hospital público Redemption em 25 de maio. Um médico e cinco enfermeiras, trabalhando sem luvas ou equipamentos básicos para controlar a infecção, morreram um em seguida do outro.

Embora a falta de água potável fosse frequente no hospital, ele era um dos maiores centros médicos da Libéria. Assim, depois de ser fechado em junho, os doentes foram levados para clínicas vizinhas, incluindo a administrada pelo pai de Kaizer. Essas clínicas estavam ainda menos preparadas para enfrentar a investida violenta do Ebola.

Em 25 de junho, um táxi amarelo deixou um jovem na frente do portão da clínica. O paciente, um sacristão da igreja, aparentemente havia sido infectado quando uma senhora idosa com o vírus foi levada à igreja para fazer suas orações. Quando o sacristão se apresentou na clínica do pai de Kaizer, seus sintomas eram do Ebola já no estágio final: vômitos e diarreia.

Por volta das 10 horas da noite, o doente ficou violento e confuso. "Ele lutava, instável, subia e descia da cama, virava de um lado, de outro", disse o assistente do médico de plantão, Moses Safa. O guarda conseguiu segurá-lo. "Mas então ele morreu", disse Safa.

O guarda logo depois também morreu, mas não antes de transmitir o vírus para o pai de Kaizer. A equipe médica da clínica, aterrorizada com as mortes no hospital público, ofereceu pouquíssimos cuidados ao guarda enfermo. O pai de Kaizer não foi autorizado a cuidar do doente, mas voluntariamente ele o tratou com medicamentos por via intravenosa e no processo foi infectado. Ele contraiu o vírus e, para o governo, não informou a família. Em teoria os funcionários devem informar as famílias sobre os resultados dos testes; na prática poucos testes são realizados e os resultados raramente fornecidos - uma outra falha sistemática que tem contribuído para a propagação do Ebola.

O pai de Kaizer, que tinha cerca de 40 anos, morreu no dia 23 de julho. Como seus pais haviam se separado há alguns anos, Kaizer ajudou a cuidar do pai moribundo. Mas como tem ocorrido com milhares de pessoas que morreram durante esta epidemia, a inclinação natural de cuidar de um ente querido mais uma vez provou ser a sua ruína.

Em nove de agosto o pai de Kaizer foi levado para o Good Shepherd Funeral Home em um caixão fechado. Embora houvesse espaço ali para 100 pessoas, somente 20 apareceram, na maioria funcionários da clínica e amigos dele dos tempos em que foi soldado do Exército. Nenhum membro da família compareceu.

Negação. Consumida pela doença de Kaizer, Mamie Doryen levou-o de táxi para casa da família em Capitol Hill. Quando o dia amanheceu os vizinhos souberam que o jovem fora trazido no meio da noite. O medo se espalhou rapidamente. Os vizinhos que sabiam que o pai de Kaizer havia morrido, viviam muito próximos e compartilhavam um poço com a família Doryen.

Era início de agosto e o governo, chocado com as mortes no Redemption Hospital e em outros centros de saúde, estava paralisado. Muitos liberianos continuavam profundamente descrentes da real existência do Ebola, suspeitando de corrupção do governo. O slogan do governo "O Ebola é real", escrito em cartazes e painéis, só reforçou a crença popular de que não era. Mas tantas mortes se registraram na capital que, para muitos, qualquer doença imediatamente despertava suspeitas de Ebola.

"Nós, que tínhamos família ali, ficamos com medo", disse Teddy Dowee, de 21 anos, amigo de Kaiser e da família Doryen. Talvez seja uma peculiaridade da resposta psicológica ao Ebola o fato de que as pessoas que não pertencem à família afetada, como os vizinhos dos Doryen, são as que melhor conseguem entender a realidade à sua volta;

Os familiares, com frequência, adotam uma atitude de negação. Negam a presença da doença na família para não serem condenados ao ostracismo - e para se convencerem de que podem cuidar de um ente querido. E quase sempre não têm nenhuma opção: por toda a zona violentamente atingida pelo Ebola, a falta crônica de leitos durante meses obrigara as famílias a cuidar dos seus doentes em casa.