Título: Manobra arriscada
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 24/06/2011, Mundo, p. 12

A justificativa do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, é de que o país gastou US$ 1 trilhão na guerra, em uma época de dívida crescente e de dificuldades na economia. "Agora, devemos investir no maior recurso da América ¿ nosso povo", declarou ele, na noite de anteontem. No entanto, o anúncio do início da retirada das tropas do Afeganistão sugere uma jogada política repleta de riscos, em vez de uma priorização da economia. Até o fim deste ano, a Casa Branca pretende repatriar 10 mil soldados norte-americanos, num total de 33 mil até 2012. "Nossa missão mudará do combate para o suporte. Em 2014, esse processo de transição estará completo, e o povo afegão será responsável por sua própria segurança", garantiu Obama. No dia seguinte ao discurso, a França, a Alemanha e o Reino Unido reafirmaram seus compromissos com o cronograma de retirada de tropas. O presidente francês, Nicolas Sakorzy, revelou que seu país vai tirar 4 mil militares até o próximo ano.

A decisão dos EUA de acelerar a retirada de tropas tornou-se pública poucos dias depois de o líder afegão, Hamid Karzai, confirmar que a milícia fundamentalista islâmica Talibã mantém um diálogo de paz com Washington. "Ela é motivada por questões políticas. Se ele entrar na campanha eleitoral com 100 mil soldados no Afeganistão, sem evidência de sucesso, seria desastroso", admite ao Correio, por e-mail, o cientista político Najibullah Lafraie, ministro das Relações Exteriores do Afeganistão entre 1992 e 1996, no governo de Burhannuddin Rabbani ¿ deposto pelo Talibã.

"A melhor aposta política de Obama é declarar a vitória, baseada no assassinato de BinLaden, e retirar as tropas o mais rápido possível. Como os oficiais americanos se opõem a isso, o presidente encontrou um meio termo", acrescenta Najibullah. Para o ex-chanceler, se a segurança não melhorar até 2012, a campanha de Obama será impactada negativamente. Mas ele concorda que a manutenção das forças no país seria ainda mais perigosa.

Opção

O almirante Mike Mullen, principal comandante militar dos EUA, reconhece que o plano de Obama incorre em mais riscos do que ele imaginava. "Mais forças durante mais tempo é, sem dúvida alguma, o caminho mais seguro. Mas isso não o torna necessariamente o melhor caminho", declarou ontem, durante audiência na Comissão de Serviços Armados da Câmara dos Deputados. "Só o presidente, em última instância, pode decidir qual é o nível de risco aceitável que devemos assumir", disse.

A subsecretária de Defesa, Michele Flournoy, lembrou que 68 mil soldados permanecerão no Afeganistão após 2012 e discordou de Muller. "Isso é mais do que o dobro das tropas que estavam lá quando Obama assumiu. Não é uma retirada precipitada que poderia pôr em perigo as conquistas em matéria de segurança", garantiu. O secretário Robert Gates explicou que a remoção dos 33 mil soldados será concluída no fim de setembro de 2012. Para Haroun Mir, cofundador e diretor do Centro para Pesquisa e Estudos de Política do Afeganistão (em Cabul), os 68 mil soldados que permanecerão no país serão suficientes para impedir que o Talibã ameace o governo de Karzai. "O Afeganistão continuará dependente das tropas remanescentes após 2014. A insurgência nunca vai acabar, enquanto os fundamentalistas e os grupos terroristas tiverem abrigo e apoio no Paquistão", sustenta. Mir aposta que a pressão exercida por Washington sobre Islamabad forçará o establishment militar paquistanês a optar por abandonar os Talibãs.

Dias difíceis

O governo afegão sabe que terá dias difíceis pela frente. "Haverá algumas batalhas, atentados suicidas e ataques à bomba. Mas nós, das forças de segurança, estamos preparados para substituir as tropas estrangeiras", comentou o general Mohammad Zahir Azimi, porta-voz do Ministério da Defesa. "Tenho confiança de que o Exército tem capacidade e habilidade suficientes." O presidente Karzai elogiou o anúncio de Obama e também demonstrou otimismo. "A confiança do povo afegão em seu exército e em sua polícia é crescente a cada dia, e a preservação dessa terra é trabalho dos afegãos", disse.

Najibullah acredita que os EUA não têm outra opção a não ser manter o diálogo com o Talibã, paralelamente à retirada das tropas. "Se os norte-americanos não estiverem prontos para colocar na agenda de negociação uma completa retirada da Otan, as conversas estarão condenadas ao fracasso", opina o ex-chanceler. De acordo com Mir, após quase uma década de comprometimento e de tremendos sacrifícios humanos e financeiros, os EUA não poderiam simplesmente abandonar seu país ao caos. Na opinião dele, a remoção imediata de todos os soldados seria o mesmo que a declaração da derrota. "Isso seria desastroso para a região e para a segurança nacional dos EUA", comenta o analista de Cabul. A secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, admitiu ontem os contatos com o Talibã. "Nós acreditamos que uma solução política... é possível", destacou, hesitante.

"Apenas um passo simbólico"

Por meio de um comunicado, o Talibã desqualificou o plano americano de retirada de tropas. "Consideramos esse anúncio, que retira 10 mil soldados este ano, como um passo simbólico, que jamais vai satisfazer a comunidade internacional, farta da guerra, ou o povo americano", afirmou a milícia fundamentalista islâmica. O grupo acusa os Estados Unidos de "repetidamente dar falsas esperanças para sua nação sobre o fim da guerra e fazer afirmações sem fundamento sobre uma vitória".

Consenso

"A estabilidade no Afeganistão dependerá não apenas do processo de paz, mas também de um consenso regional sobre o país. Atores regionais, como o Paquistão, o Irã, as repúblicas da Ásia Central, a Rússia, a Índia e a Arábia Saudita, devem estar convencidos de que a estabilidade no Afeganistão é um interesse comum. Mas esse diálogo regional ainda não começou."

» Haroun Mir, cofundador e diretor do Centro para Pesquisa e Estudos de Política do Afeganistão (em Cabul)

Desilusão

"A estratégia de retirada do Afeganistão se baseia na transferência de responsabilidade da segurança para o governo afegão. O presidente Hamid Karzai sustenta que suas forças estariam prontas a assumir essa responsabilidade até 2014. Mas tal afirmação é vazia. Karzai parece desiludido com os EUA e, por isso, tenta se aproximar do Paquistão e negociar com o Talibã."

» Najibullah Lafraie, ministro das Relações Exteriores do Afeganistão entre 1992 e 1996