O Brasil celebra 10 anos de Reforma do Judiciário e da criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 30 anos da Lei de Execução Penal e da assinatura da Convenção da ONU contra a Tortura. A convergência de datas tão significativas abre a oportunidade para a necessária reflexão sobre o que ainda é preciso ser feito para a efetiva democratização do acesso à Justiça. 

Os dados revelam realidade alarmante: conforme o Ipea, 63% das pessoas envolvidas em conflito não aciona o Sistema de Justiça; a prática de tortura é sistêmica, segundo as Nações Unidas; o sistema carcerário, cuja população aumentou 67% nos últimos 10 anos, é medieval e dá em oferenda nossos jovens (negros em sua maioria) à rede de facções criminosas. A violência contra os segmentos mais vulneráveis %u2013 idosos, crianças, negros, mulheres, deficientes, população indígena e LGBT %u2014 ecoa na sociedade pelas vozes que incitam o ódio sob o manto de pretensa imunidade. 

No cenário de exclusão e violência, é preciso radicalizar a política de ampliação do acesso à Justiça. Para tanto, não basta a inclusão no sistema da maioria excluída. Há consenso de que o acesso à Justiça não se limita ao direito de acessar o Judiciário. Para que a promoção da Justiça seja tarefa de todos, há que romper os limites das liturgias forenses e levar a Justiça onde o conflito está, ou seja, na vida, na casa e na rua. 

Nesse sentido, a política de universalização do acesso à Justiça deve contemplar dois eixos de atuação: o de proteção dos direitos violados %u2014 inclusive quando o órgão violador é o próprio Estado %u2014 e o de prevenção da violência, por meio do envolvimento da sociedade na formulação de uma política que assegure direitos e promova a paz. 

No primeiro eixo, é preciso coragem para a adoção de políticas públicas no âmbito penal com fraco apelo popular: firmeza no combate à tortura e à violência policial, reestruturação da política penitenciária e fortalecimento da Defensoria Pública para assegurar a proteção dos direitos humanos. Não é aceitável que o Brasil pretenda consolidar sua democracia praticando um direito penal patrimonialista e revanchista que olha para o passado, julga e pune, sob a pretensão de que a privação da liberdade vai %u201Creeducar%u201D o indivíduo a viver em sociedade. 

Os estatutos penais devem absorver as práticas restaurativas que recuperam as relações afetadas pela violência. São inúmeras as alternativas penais possíveis que, por sua efetividade, afastam a impunidade: as prestações de serviços comunitários; os círculos restaurativos nos moldes da Resolução nº 2002/12 da ONU; a mediação de conflitos no âmbito penal, civil e familiar. 

No eixo da prevenção da violência, a sociedade pode promover a justiça comunitária antes da judicialização dos conflitos, por meio da mediação, da educação para os direitos e da articulação de uma rede de participação na gestão da comunidade. A política de acesso à Justiça deve mobilizar todos os segmentos sociais contra a violência que emerge no cotidiano, dentro e fora do Estado. Para além das múltiplas portas que o Sistema de Justiça deve abrir, é necessária a adoção de espaços livres de coerção para a construção de uma justiça acessível, mas, sobretudo, realizada por todos.