Leonardo da Vinci poderia facilmente ter sido um tabelião, afinal era essa a profissão do pai, Ser Pietro, do avô Antonio e de um dos bisavós. Mas quis a sorte que um dos maiores gênios de todos os tempos nascesse de uma relação ilegítima entre um nobre e uma adolescente, que cederia a guarda do filho para o pai quando a criança tinha apenas 5 anos. A origem bastarda acabou sendo uma bênção na forma de maldição, libertando o jovem italiano para fazer da vida o que sua mente bem quisesse. 

O menino acabou passando a infância a explorar a natureza com um tio, dissecando e desenhando lagartos e outros bichos, até se mudar para Florença. Já moço, passou a trabalhar no ateliê do grande artista conhecido como Verrocchio, onde revelou seu admirável talento com a tinta e o pincel. Foi, contudo, também sob a tutela do mestre florentino, que Da Vinci se tornou cientista. 

Com 19 anos, ele foi encarregado de colocar uma esfera de bronze no topo da cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore, criada pelo mestre Filippo Brunelleschi, considerado responsável por revolucionar princípios básicos da arquitetura na época. A tarefa, no entanto, mostrava-se um desafio: a peça decorativa de 2m de diâmetro deveria ser erguida a mais de 100m do chão, com uma precisão enorme. O jovem desenvolveu, então, um sistema de gruas para elevar e posicionar o objeto. Assim, não só cumpriu o trabalho como deu início a uma produtiva faceta de engenheiro e arquiteto. 

Ele, talvez, tenha sido o maior artista da história, e produziu apenas 17 pinturas. A razão para isso? Alguns diriam que pintar era fácil demais para ele. Eu não penso assim. Acho que é, realmente, porque ele não tinha tempo, comenta Bulent Atalay, autor dos livros A matemática e Mona Lisa e O universo de Leonardo (em tradução livre, ainda sem edição brasileira). Mesmo nas pinturas, elementos matemáticos, como a espiral logarítmica, eram a marca registrada do trabalho de um cientista, que não separava a arte das leis da natureza. 

Leonardo fez esboços de importantes edifícios, como o palácio de um nobre de Milão, a casa de campo de um governador francês e um projeto para a Residência Medici, em Florença. Ele chegou, ainda, a enviar uma proposta para a construção da cúpula da Catedral de Milão, mas ela foi rejeitada. Seu mais ousado projeto como arquiteto não foi construído: uma cidade utópica, que deveria ser erguida onde hoje fica a pequena Romorantin-Lanthenay, na França. A metrópole, que seria a nova capital francesa, tinha a estrutura baseada na produção de energia hidráulica, em complexos sistemas de esgoto e em outros avançados conceitos de urbanismo. 

A ambiciosa ideia foi encomendada pelo Rei François I e tinha como destaque um enorme palácio, projetado para ficar no centro da cidade. O regente chegou a investir dinheiro para adaptar o rio local ao sistema de canais imaginado por Leonardo, mas os planos foram cancelados em seguida. A propagação da peste negra na região e a falta de dinheiro colocaram fim ao sonho da cidade perfeita pouco antes da morte de Leonardo, em 1519, aos 67 anos. 

Lições 
Mesmo que muitas criações não tenham sido colocadas em prática por conta das limitações existentes nos séculos 15 e 16, o Leonardo arquiteto não ficou preso à fantasia. Para estudiosos de sua obra, o que caracterizou os trabalhos do mestre renascentista nessa área foi a abrangência. O artista não se intimidava e lidava com todo tipo de problema de construção. Ele não só especulava esse imaginário, mas também elaborava formas de fabricar aquilo, diz Carlos Antônio Leite Brandão, professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 

Os conhecimentos de mecânica, de hidráulica e das propriedades de materiais naturais permitiam que o gênio planejasse toda a construção de um prédio. Ele desenhava o processo de fabricação e inventava máquinas para serem usadas na execução da obra. Leonardo estudou sistemas de polias e cabos para levantar cargas, fez experimentos para compreender as propriedades dos materiais e descobriu princípios usados em construções até hoje. 

Leonardo deixou várias lições. É importante ressaltar que, para ele, a ciência e a arte eram coisas que não se separavam. Elas eram vinculadas. A gente separa a ciência da arte como o belo da verdade. Mas, na visão dele, essas coisas eram muito ligadas, avalia Brandão. O trabalho de Leonardo como arquiteto é muito pouco estudado, pois os projetos muitas vezes não foram construídos, lamenta o professor da UFMG. 

A ponte 
A Mona Lisa das pontes é só mais um exemplo dessa genialidade. Criada para ficar no estuário de Golden Horn, um pequeno braço de mar onde hoje fica Istambul, o elevado foi encomendado pelo sultão Bajazet II no século 16. No entanto, o desenho, arrojado demais para a época, fez com que a obra só fosse realizada na virada do século 21. Em 1995, o arquiteto norueguês Vebjørn Sand achou o modelo em uma exposição do artista renascentista e decidiu construí-lo usando madeira e aço. A ponte foi concluída em 2001, perto da cidade de Ås, na Noruega, a mais de 3 mil quilômetros do ponto onde seria erguida originalmente. 

De acordo com Sand, o design de Leonardo é flexível o suficiente para ser reproduzido em diversos outros lugares com a tecnologia moderna, mas talvez não tivesse se sustentado 500 anos atrás. Não há nada de errado com o design em si, mas Leonardo não teria sido capaz de construí-la sobre o Golden Horn, já que a passagem de água é muito profunda e veloz, especula o arquiteto. As soluções que o artista-engenheiro criou na época, com estruturas flutuantes, também tinham falhas, e não teriam funcionado. 

A geometria, contudo, que é a parte mais bonita do design, não foi modificada, assegura Sand. O design é pura matemática, uma combinação de arte, ciência e filosofia únicas do pensamento de Leonardo. Tem força e energia, quase uma qualidade mitológica que parece ocultar um segredo universal. Sua ideia fundamental é maior do que a vida. 

Universal 
O artista e arquiteto Vebjørn Sand já construiu réplicas de gelo da ponte na Antártida, em Nova York, na Groelândia e em Copenhague. A intenção do projeto é construir réplicas em cada continente, como um símbolo do espírito criativo da humanidade. Na América do Sul, o norueguês estuda levantar uma ponte de Leonardo no Chile, mas não descarta levar a ideia ao Brasil. 

Para saber mais
Renascimento de ideias

O termo Renascimento, ou Renascença, faz referência a um movimento intelectual e artístico surgido na Itália entre os séculos 14 e 16 e, dali, difundido por toda a Europa. Durante esse período, a concepção medieval do mundo foi contraposta por uma nova visão, empírica e científica, a respeito do homem e da natureza. A ideia de um renascimento na cultura tem relação com a revalorização do pensamento e da arte da antiguidade clássica e com a formação de uma cultura humanista. O período é definido como de grande florescimento do espírito humano, espécie de descoberta do mundo e do homem.
Leia na quarta-feira: 
A contribuição de Da Vinci para a mecânica.