É bastante provável que hoje seja um dia agitado nos escritórios de advocacia acostumados a lidar com megawatts em suas petições. Se a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) confirmar a expectativa geral e reduzir o preço máximo da eletricidade no mercado de curto prazo, os telefones da banca devem tocar com mais intensidade. Enquanto o país se vê às voltas com escassez de chuvas e reservatórios secando, uma onda de judicialização tem feito com que a última palavra sobre grandes questões do setor esteja saindo da esfera governamental para cair nos tribunais. E a mudança no cálculo do preço “spot” da energia, que pode cair 53%, guarda potencial de sobra para aumentar o tamanho das pilhas de ações em andamento.

Nos últimos dois anos, os processos que correm na Justiça tratam de quase todos os anúncios importantes feitos pelo governo: da renovação de concessões à divisão de gastos pelo acionamento das térmicas. Escritórios com experiência no ramo contam, reservadamente, que suas áreas de contenciosos representavam menos de 10% do trabalho até dois ou três anos. A ocupação se concentrava na elaboração de pareceres e assessoria jurídica para contratos. Agora, os contenciosos já ocupam 40% da agenda, conforme afirma um advogado com prestígio no setor.

A “guerra das liminares” deu seus maiores passos com o início da exploração da nova fronteira energética do país. O anúncio de leilões para projetos na região amazônica gerou uma espiral de processos. Um levantamento feito pela Advocacia-Geral da União (AGU), a pedido do Valor, mostra que 53 empreendimentos – usinas, pequenas centrais hidrelétricas e linhas de transmissão – são alvo de contestações judiciais. Ao todo, a AGU acompanhava recentemente 201 ações contra esses projetos, das quais 158 estão em curso e 43 foram arquivadas.

Quase sempre, os questionamentos miram o licenciamento ambiental, dentro ou fora da Amazônia Legal. O Ministério Público Federal (MPF), por exemplo, tem sete ações contra a hidrelétrica de São Manoel, no rio Teles Pires, situada na divisa de Mato Grosso com o Pará e com capacidade prevista de 700 MW.

A usina de Baixo Iguaçu (PR), com 350 MW de potência, está com suas obras paradas desde junho por causa de uma liminar dada pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região contra a licença de instalação. “Observamos um recrudescimento dos ambientalistas desde meados da década passada”, afirmou Lindolfo Zimmer, presidente da Copel, estatal paranaense responsável pela usina, em evento no início deste mês. “Há uma pressão muito forte pela paralisação dos investimentos. Isso é grave.”

Agora, além da contestação dos novos projetos do setor, as ações judiciais também se voltaram contra as medidas mais recentes para conter e equacionar a explosão de custos na operação do sistema. O relato de advogados ouvidos pelo Valor indica que há o reconhecimento de que a escassez de chuvas contribuiu para o salto nas despesas. Porém, as empresas avaliam que não devem assumir custos gerados pelos “remendos” na regulação do setor que surgiram a partir da Medida Provisória 579 de 2012, que reduziu as contas de luz por meio da renovação antecipada das concessões.

 

“Recorrer ao Judiciário é a última alternativa porque gera desgastes enorme e conduz as empresas a decisões sem qualquer previsão de desfecho”, afirma o advogado Guilherme Baggio, ex-consultor jurídico do Ministério de Minas e Energia e sócio do escritório Baggio e Costa Filho. Ele considera que o setor elétrico perdeu uma característica importante: sempre ter se mostrado capaz de “resolver internamente” as questões de impasse com o governo. “Agora, decisões relevantes deixam de estar nas mãos da agência reguladora, com um corpo técnico qualificado, e migram para cabeça de um juiz.”

Ciente do peso que lhes foi atribuído, um grupo com pouco mais de dez magistrados resolveu pedir socorro. No início do ano, em uma sala de aula improvisada no edifício da Justiça Federal em Brasília, os juízes ouviram uma espécie de “glossário de A a Z” do setor. Técnicos da Aneel e do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) tiveram que responder até à constrangedora pergunta da qual tentam escapar em eventos públicos: “Vai ou não vai ter racionamento?”.

Baggio atribui o recente aumento de liminares expedidas no setor à alta exorbitante dos custos no setor causada pelo acionamento contínuo das térmicas. “Quando o preço está muito alto, os problemas emergem. Se o valor da energia no mercado à vista estivesse em R$ 30, não estaríamos vivendo essa onda de judicialização”, afirma.

Só um dos remendos criados pelo governo em 2013, a resolução nº 3 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), foi alvo de mais de 50 ações judiciais. O ato buscava redistribuir temporariamente, entre geradoras e comercializadoras, as despesas com encargos bilionários causados pelas usinas térmicas. Só os consumidores pagavam essa conta.

Com as liminares, a resolução jamais pôde ser aplicada. Na mesma situação de impasse se encontra a portaria 455, do Ministério de Minas e Energia, editada em agosto de 2012. Nesse caso, o governo mexia na forma de registro dos contratos no mercado livre, mas uma sequência de liminares travou sua aplicação. De acordo com a AGU, há decisões de primeira instância e do TRF da 1ª Região, todas desfavoráveis à União.

Para o advogado Julião Coelho, ex-diretor da Aneel, o ponto em comum de toda essa onda da ações na Justiça é a falta de diálogo do governo. Isso vale, segundo ele, tanto para medidas de caráter regulatório como no processo de licenciamento de grandes obras.

Desta vez, na mudança do limite de preço da energia, Coelho elogia o fato de que houve discussões prévias e audiência pública na Aneel. Frisa, no entanto, que a proposta da agência tem aspectos juridicamente frágeis.